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Cheguei...

Ano após ano, no início de cada Outubro, havia um dia que eu detestava, quase tanto como desejava. Chegava à escola, apresentava-me e esperava pelo que vinha a seguir. Uma conversa entre o desconfiado e o frio com a colega que me recebia, como se eu tivesse culpa pelo atraso na colocação e, por fim, as recomendações do costume, para inglês ver, mais o velho encolher de ombros resignado acerca da turma que me cabia em sorte.
Nesse ano calhou-me uma turma de 2º ano. Os miúdos eram tagarelas mas simpáticos e o Domingos lá estava no meio deles. Não sabia ler. O veredicto, diversas vezes repetido nas fichas de avaliação que eu encontrara, era mais lacónico do que rigoroso. Retratava o seu soletrar titubeante face a um texto, mas estava longe de me preparar para o número de circo com que um dia o miúdo me brindou, desatando a decifrar, sabe Deus como e porquê, os pi, os du, os ta, os le e os mo espalhados pelos quadros silábicos que ainda existiam naquela sala. Na altura, confesso, tal exibição pareceu-me mais um defeito que um feito e, por isso, é que talvez os dias tenham continuado a passar, como sempre, desenganados. Numa manhã, não fazíamos mais do que ir até à lata da tia e voltar até à mó, enquanto a avó comia pão de ló. Na outra, era o tio que levava a vela, a Ana que lavava o pote e o Tó que remava o bote. Entre engasganços mil, sobrava-nos em paciência o que nos faltava em perícia. Algumas palavras à força de tanto serem vistas e relidas iam adquirindo, agora, a fluência necessária. Se havia dias medonhos, também os havia bastante mais felizes. E se eu não desistia, o Domingos, pelos vistos, também não dava parte de fraco. Vá lá saber-se porquê.
Como é que aqueles textos tão imbecis não me desacreditaram, como professora, aos olhos daquele rapaz ? Como é que insisti tanto tempo naquele jogo absurdo das puas e dos popós ? Como é que para aquele miúdo o quotidiano foi adquirindo um outro sentido ? Ainda hoje não sei responder. Lembro-me apenas que fui procurando e encontrando outros textos impressos noutros livros. Alguns deles eram objecto de uma leitura conjunta. Outros já eram lidos só por ele e havia aqueles, ainda, que necessitavam  de ser previamente resumidos e estrategicamente trabalhados para que o Domingos os pudesse ler com sucesso. Nem sempre se desenvencilhava sozinho, mas isso pouco importava. A leitura final do texto era ele que a fazia. Levantava o braço e esperava que eu me aproximasse para me comunicar que estava pronto para ler. Um dia, foi assim que tudo começou. Havia, no texto, um coelho que saía da sua lura. Como o vi hesitante, confrontei-o com o meu então habitual, ao qual se seguiu uma breve pausa, seguido de um já sei, já sei tão aliviado quanto ansioso.
- Já sei! Já sei! ... O coelho saiu da sua baroca.
A frase saiu-lhe de sopetão, provavelmente à velocidade de um coelho a sair de uma baroca. Não o corrigi. Deixei-o continuar. É que há momentos na vida em que uma professora tem que saber discernir quando uma baroca é mais familiar para um coelho de Paredes do que para si própria e, forçosamente, mais fluente do que aquela  toca de coelho que o texto desconhecia poder ser o sinónimo vulgar de uma baroca triunfante.


  
Ficha do Artigo
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Edição:

N.º 121
Ano 12, Março 2003

Autoria:

Ariana Cosme
Fac. de Psicologia e Ciências da Educação, Univ. de Porto
Rui Trindade
Faculde de Psicologia e Ciências da Educação da Universidade do Porto
Ariana Cosme
Fac. de Psicologia e Ciências da Educação, Univ. de Porto
Rui Trindade
Faculde de Psicologia e Ciências da Educação da Universidade do Porto

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