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Retratos

[De gente que toda a gente conhece.
Gente que está nos sítios por onde toda a gente passa.
Gente como a gente com vidas para contar.]

A visita

O grande relógio do átrio marca o meio-dia. A hora do almoço dá lugar à da visita. Um aglomerado de gente serpenteia numa fila. Vão levantar o cartão imprescindível para a entrada no Hospital. Não importa a espera, o que se quer é chegar ao leito do doente ?à horinha.
Dona Deolinda é sempre a primeira a chegar à ala hospitalar onde o marido está internado. De roupão, mãos nos bolsos, Augusto espera-a no corredor. Sorri-lhe, acena e dá uns passitos em direcção a ela. Deolinda ainda não se habituou a este comportamento afectuoso do marido. ?Lá fora, é um ruinzinho!?, ironiza, mas pouco. ?O hospital muda as pessoas.? E por isso, Augusto vem para o frio antecipar o encontro com a mulher. ?Lá fora ? insiste Deolinda ? vai a todo o lado sem mim.? Dentro do hospital, iria com ela para qualquer lado.
Na hora da visita os doentes mostram a sua melhor cara. Quem olha o marido de Deolinda dirá que é apenas um domingueiro. Ela concorda: ?O mal está lá dentro!? Augusto torce a cara ao vaticínio da mulher. Não quer falar da doença. Quer saber dos filhos. ?A filha está a trabalhar?, informa Deolinda como se isso fosse uma novidade. Em jeito de brincadeira Augusto atira: ?E merece!? E o filho? ?Diz que te vem ver no fim-de-semana.? Augusto olha para a mulher incrédulo como se ela tivesse dito uma blasfémia. ?No fim-de-semana? Eu na sexta já me devo ir embora!? A convicção com que fala faz uma enfermeira dar meia volta e entrar na ala. ?O senhor vai aonde??, pergunta. ?Quero ir às Antas ver o FCP no domingo!? O comentário desperta o riso na sala que entretanto já se encheu de visitas. Ao ver a reacção da assistência a enfermeira decide entrar na brincadeira. Afinal rir, faz bem à saúde. ?Tenha juízo! Você quando sair daqui tem é de ir cortar esse cabelo!? Os olhares do público voltam-se para a cabeça de Augusto. Realmente precisa de ir ao corte.
João, outro doente da ala, está sentado na sua cama. Fátima, a sua mulher, não vem todos os dias como Deolinda. ?Agora que estou de baixa ela não pode andar a faltar ao emprego?, comenta como que a justificar o facto de ser o único que ainda não tem ninguém ao leito. A assistência partilha o conformismo do doente. ?O Bagão diz que vai pagar as baixas a tempo. Mas se há gente à espera do dinheiro há três meses, nós não vamos receber tão cedo.? Com este pensamento, João deixa a ala em silêncio. Por uns minutos fazem-se contas à vida. Vai ser um mês apertado.
Enquanto João discursa, Deolinda aproveita para esvaziar o saco com os mantimentos para o marido. ?Antigamente - diz à surdina - não deixavam entrar com comida.? Trás pouca coisa. Uma garrafa de água, um pacote de bolachas, dois iogurtes. ?Até carne estufada cheguei a trazer escondida quando a minha mãe esteve aqui internada. A comida era péssima.? Mas agora não. ?Come-se bem!? Garante Augusto dando o mote para a mudança de assunto. Seguem-se descrições pormenorizadas de todas as refeições anteriores. Se não estivessem todos internados, dir-se-ia que estavam a falar de ?grandes jantaradas?. E a conversa segue até que alguém interrompe para dizer que o pior são as noites. ?Custam muito a passar".
Ao contrário, a hora da visita passa depressa. São 19h e Deolinda é sempre a última a sair. ?Estou por minha conta!?, sorri. Assim que as visitas se despedem, os doentes dispersam. Uns vão ver televisão, outros acordam pares para depois do jantar jogar uma ?sueca?. A enfermeira vem à ala avisar que é hora de ir embora. Augusto prepara-se para acompanhar a mulher até ao corredor. Mas Deolinda recusa: ?Deixa-te estar! Ou ainda te constipas!? Na ala há aquecimento central, mas no corredor não. Ainda assim Augusto arrisca. Despedem-se. Deolinda olha para trás e encolhe os ombros: ?Lá fora, estou sempre a desejar que ele não esteja de folga. É um chato?? Mas o hospital muda as pessoas. E por isso Deolinda retribui o gesto do marido. E vai-lhe acenando enquanto caminha em direcção à saída.


  
Ficha do Artigo
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Edição:

N.º 121
Ano 12, Março 2003

Autoria:

Andreia Lobo
Jornalista, A Página da Educação
Andreia Lobo
Jornalista, A Página da Educação

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