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Uma história quase triste

Algures, em 3 de Setembro de 2007,

Querida Alice,

No tempo em que o teu avô tinha a idade que tu agora tens, um pássaro livre chamado Camus disse que as grandes ideias vêm ao mundo mansamente, como pombas. Para que nos apercebamos da sua presença, basta sermos capazes de ouvir, ?no meio ao estrépito de impérios e nações, um discreto bater de asas, o suave acordar da vida e da esperança?.
As gaivotas de que te falei na última carta eram aves atentas a esse suave bater de asas. Conscientes da inversão de valores que apodrecia a comunidade avense, lançavam para o espaço interrogações maiores que o medo, que acordavam recordações da infância, acendiam caminhos e juntavam sons dispersos, para que o derradeiro pássaro não encerrasse as asas e o temerário canto.
As gaivotas inventaram outros modos de viver e de voar. Contrariavam os porquenãos (já te falei neles), pássaros com tendência para amanhecer demasiado tarde e beber silêncios no degredo dos ninhos. Se existia uma ave-do-paraíso, algum paraíso haveria algures e, crentes na bondade dos pássaros, as gaivotas ergueram uma escola entre dois rios, onde renascia a ternura nos ramos expostos ao doce embalo de novas aragens. Aquelas aves tinham nascido sem destino, sem corredores aéreos delimitados. E, porque o seu sonho se consumou quando já nada se esperaria da escola, tudo ainda era possível.
A fama da escola das aves chegou longe. Ainda que muitas outras escolas de voo não acreditassem no novo método de voar, vinham pássaros de toda a Terra, em longas migrações, só para verem se era tal como se contava. Dos olivais aos montados, das serranias aos vales profundos, acorria à escola das aves uma grande diversidade de pássaros e de intenções. Os pássaros que na fala das gaivotas se reviam delas se aproximavam. E, se alguns as desdenhavam, outros se lhes juntavam: o rouxinol com o seu maravilhoso trinado, o melro saltitante, o beija-flor de voo gracioso?
Mas esta é uma história talvez triste. Um dia, vinda do outro lado do rio, caiu sobre a escola das aves uma praga de maldade. Algumas negrelas (aves palmípedes que, em latim, dão pelo nome de fulica criatata) urdiram uma sórdida conspiração. Importa realçar que foram apenas algumas negrelas, não todas, pelo que os actos insanos de um pequeno bando não poderão ser estigma para as restantes, porque a maioria das negrelas permaneceu fiel à verdade e à rectidão.
Num primeiro momento, o pequeno bando de negrelas invadiu o espaço da escola, parasitou saberes e imitou o canto de outros pássaros, para lhes roubar o futuro. As gaivotas acreditaram nas negrelas, deixaram-se enganar pelo seu encantatório canto. Espantaram-se quando as negrelas recusaram elevar a alma à altura do sonho, quando as negrelas decidiram trocar a liberdade pela protecção dos galhos velhos da densa vegetação das margens de charcos e lamaçais. E, por tudo ter sido tão súbito e surpreendente, as gaivotas ficaram indefesas perante os ataques que se seguiram. As gaivotas aperceberam-se de quão frágeis são os espaços de liberdade. Aves sem cuidados, foram presas fáceis para as traiçoeiras arremetidas de predadores. Os ares ficaram empestados por grifos instigados pelo bando de negrelas. Essas aves de rapina saciaram os apetites nas carcaças podres dos cadáveres dos pássaros que sucumbiram. Os grifos não diferiam de outras aves, que são emplumados itinerários entre ingerir e evacuar, e eram tão vorazes que, por vezes, não logravam levantar voo dos campos da morte. 
As negrelas que se esconderam nas árvores de troncos putrefactos deixaram atrás do si um rasto de destruição. E não passou muito tempo até que os ventos trouxessem do outro lado do rio ecos de infâmias. Aves de mau agoiro ensaiavam papagaios, que são, como se sabe, aves que repetem disparates sem cuidarem de saber dos efeitos. Atreveram-se mesmo a publicar falsidades nos jornais da passarada, pois ignoravam que a ignorância não é pecado e que o pecado está em não querer saber.
Não creias, querida Alice, que na História dos pássaros sejam raros episódios tão tristes como o que acabo de narrar. Nem creias tampouco que o mal possa alguma vez triunfar. Na História dos homens, houve um Galileu que foi caluniado e perseguido pela Inquisição, só porque afirmava que a Terra girava em volta do Sol. E houve outro galileu caluniado e perseguido, só porque transgredia por amor e anunciava novos tempos. Porém, até na morte triunfaram.
O que parecia inevitável não aconteceu. Os papagaios calaram o bico, as aves de rapina encolheram as garras, o pequeno bando de negrelas dispersou, a grande comunidade das negrelas sossegou, e a escola das aves ressurgiu. Como vês, é tudo uma questão de tempo, esforço e esperança. Tudo o que é justo e verdadeiro se ergue das cinzas, como a Fénix, que é uma ave da mitologia. As gaivotas da nossa história continuaram a sobrevoar mares longínquos em busca de novos sóis, animadas da coragem que permite reconstruir ninhos devassados, e envolvidas numa verdade tranquila, acima da espuma dos dias e de marés negras, em voos jamais adivinhados.
Sê como as gaivotas, querida Alice.

O teu avô José


  
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Edição:

N.º 121
Ano 12, Março 2003

Autoria:

José Pacheco
Escola da Ponte, Vila das Aves
José Pacheco
Escola da Ponte, Vila das Aves

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