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Retratos

De gente que toda a gente conhece. Gente que está nos sítios por onde toda a gente passa. Gente como a gente com vidas para contar.

Um porteiro

Sentado a uma pequena mesa à entrada do edifício o porteiro folheia o jornal. ?O meu trabalho é estar aqui todo o dia?, diz sem querer muita conversa. ?É chatíssimo.?
As horas demoram a passar. O prédio já teve mais cor. Os seus cinco andares situados na Baixa do Porto alojaram grandes e conceituados escritórios de médicos, advogados e engenheiros. Restam ainda alguns, poucos a contar pelo número de placas a anunciar os diferentes serviços e os nomes dos ?doutores?. Mas a antiguidade da estrutura ainda revela beleza.
Aos 67 anos, António (nome fictício) explica que a desertificação do edifício causou alguma insegurança aos últimos ocupantes que lá permaneceram: ?Quando [os médicos] deram por ela já tinham uns drogados a viver no quinto e no quarto andar.?  E essa foi a razão da sua ?contratação?. ?Eles escondiam-se e assaltavam os doentes?, acrescenta sem tirar os olhos do Jornal de Notícias.
Taciturno, bem podia esperar outro modo de gozar a sua reforma. Mas não. ?O dinheiro é pouco e as despesas são muitas?, desabafa. Por isso aceitou ?vigiar as entradas?. Com uma condição: a de não fazer descontos. ?Já viu? 65 contos e ia fazer descontos, para quê? Para não levar nenhum ao fim do mês??
Menos incomunicável após a breve revelação António explica-se: ?É por isso que não lhe posso dizer o meu nome. Ainda vem aí a ministra [Manuela Ferreira Leite], está a perceber??

(i)migrante

A sala está cheia de tabuleiros vazios. A hora do jantar já passou há pelo menos duas horas. Ao frenesim das refeições sucede um tempo de abandono. Os restos nos pratos aguardam alguém que os leve das mesas para o lixo. Um rapaz moreno, cabelo espetado, magricela, talvez 16 anos e um homem loiro esbranquiçado, mais de 1,90m, talvez 40, lançam um olhar rápido sobre os destroços, como a tirar as medidas. ?Limpar tudo??, pergunta o homem num português de Leste. O rapaz, sem olhar para o colega mais velho abana a cabeça em sinal afirmativo. E começam de imediato a limpeza.
Poucas palavras. Gestos ligeiros. Mesa a mesa. O lixo vai sendo metodicamente empilhado. Pratos sobre pratos. Garrafas de vidro amortecidas dentro de copos de plástico. E tudo em cima de conjuntos de tabuleiros colocados uns em cima de outros.
A sala ganha um aspecto mais asseado à medida que o homem e o rapaz a vão percorrendo. Canto a canto.
?Pssst!? - chama o rapaz, talvez ainda sem saber pronunciar o nome estrangeiro do colega. ?Leva este!? - ordena, apontando para uma das pilhas de lixo. O homem obedece àquele que podia ser seu filho, como a seu pai. Carrega tudo escada a baixo e logo sobe para iniciar nova viagem. Duas, três, quatro vezes? O rapaz limpa as mesas, agora vazias, com um pano. Falta apenas uma pilha, mas a sala está outra vez a querer encher-se de gente. O homem olha para o rapaz com um semblante cansado e este percebe que, a bem do seu colega, deve ser ele a carregar a última pilha. O rapaz encosta os tabuleiros ao peito, mas o monte de lixo chega-lhe até ao queixo. O desequilíbrio é iminente. E então um prato cai. E parte-se. O homem baixa-se com sacrifício e apanha os cacos. ?Deixa, eu levo? , diz ao rapaz como um pai diria a seu filho.


  
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Edição:

N.º 120
Ano 12, Fevereiro 2003

Autoria:

Andreia Lobo
Jornalista, A Página da Educação
Andreia Lobo
Jornalista, A Página da Educação

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