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Baptista-Bastos - ou a memória como sentimento

Sabemos como desde O Secreto Adeus (1963), Baptista-Bastos tem procurado testemunhar as razões da asfixia cultural e social vivida nos anos 60 (quando o fascismo salazarista pôde reforçar as suas amarras no advento da guerra colonial), nesse desejo tão coerente de "transformar a solidão em revolta" e ser isso um belo pretexto para um escritor tantas vezes pretender reconstruir a sua moral ?a partir de pequenas afirmações quotidianas de protesto, honradez e  incomodidade".  E é assim que toda a prosa de ficção de Baptista-Bastos se deve entender como denúncia de um tempo asfixiante, surdo e tão mentiroso, por entre o conhecimento de mentalidades rasteiras e medíocres, num modo de deixar-andar por não ser possível outra forma de conivência que não fosse falar à boca calada, ao luar das esquinas ou às mesas dos cafés, na atenção de olhares suspeitos e conversas cruzadas de muitas outras intenções, por entre boatos e sonhos depressa desmentidos, angústias, prisões e mortes um pouco por toda a parte no Portugal salazarista e marcelista que o autor de Cão Velho Entre Flores sempre recupera nas páginas dos seus breves romances.
Por isso, não se descobrem nas suas páginas narrativas quaisquer personagens de que o leitor depois se lembre, porque o que sempre orienta o ?discurso? ficcional de Baptista-Bastos é esse apelo à memória como sentimento do tempo vivido por entre aventuras e histórias de que se torna no principal narrador ou esse mesmo se joga num processo narrativo e confessional que recorre à memória como forma de reconstituir um tempo presente e passado, mas recuperado através das sombras e fantasmas que marcaram o seu próprio trajecto em quase setenta anos de vida. Assim, nas elegias, alegorias ou parábolas de que se justifica esse ?cosmos? do autor de A Colina de Cristal, o que mais sobressai é ainda o sentido pessoal de saber evocar as mesmas gentes e os mesmos lugares por caminhos visíveis e recuperados sob outras perspectivas ou sentimentos, mas sempre num processo literário único e individualizado de a escrita ser a sua possível salvação, mesmo na repetida atitude de fixar a realidade nos limites do sonho e da certeza, da ilusão e de alguma não escondida inocência por esses lugares de espanto e de denúncia.
Assim, uma vez mais este romance-narrativa, intitulado No Interior da Tua Ausência, que parece dizer desde logo o mais essencial, o que de novo se depara ao olhar atento do leitor, nos fios da memória e no tom tão coloquial e de sobreposição como se articula toda a história ficcional, é ainda essa mesma relembrada amargura (amores feitos e desfeitos, caladas humilhações ou desgostos, no meio de uma vida cinzenta, pesada e difícil como era a dos tempos desse Portugal salazarista que a cada passo se evoca) com que Baptista-Bastos assume uma vez mais essa razão e força de não saber "fazer batota com as palavras" e sempre desejar "escrever coisas que as pessoas compreendam, mesmo se aquilo que escrevo possa parecer codificado, exactamente porque é minucioso".
Mas, nesta repetida forma de descer aos infernos da memória pelos mesmos rios e lugares de outrora, uma e outra vez o Autor faz entender a literatura ou a prosa de ficção como a atitude de verdade em que todas as tensões e ilusões se combinam nos passos dados e andados, mesmo na evocação de quem se encontrou nesse caminho de tantos anos (Aquilino, Carlos de Oliveira, Fernando Namora, Manuel da Fonseca e outros). E, quase no termo desse percurso revivido ou reinventado, ainda desabafar: "Não me reconheço nesta casa, neste país. Tenho medo. Não é de morrer, é de envelhecer. A velhice é muito mais chata do que a morte. Porque a morte é assim, não se sabe como." Ou, ao reconhecer-se como um "homem sem terra e sem sítio", procurar resolver os problemas do livro que escreve (este ou outros que hão-de chegar), na plena consciência ou sentido desencanto de proclamar ser "um homem que não viveu o que desejava viver, invento tudo, recupero memórias que me não pertencem, memórias dos outros, de outra gente,de gente que me não pertence, gente muito velha e morta".
Mas neste acto de se assumir em consciência pessoal, numa espécie de ajuste de contas consigo mesmo e com os outros que andaram ou se cruzaram no seu caminho, Baptista-Bastos declara uma vez mais, no entusiasmo da escrita e na sinceridade narrativa que nunca deixa de lado, que ?o que lhe fazia falta era aquele tempo, tempo de amigos. O que faz falta aos homens é o tempo em que viveram um determinado tempo, onde os amigos definem e marcam esse tempo?. E por isso é do tempo que sempre se fala, desse tempo ?em que a memória cresce?, e os amigos ou os homens que foram companheiros de aventura se arvoram ainda como sombras ou marcos que ficaram para esclarecer ou evocar esse tempo e espaço de cobardias e esperanças, de tantos actos de amor e de ódio. Enfim, uma profunda ?ausência? relembrada por dentro, na intimidade dos lugares e das pessoas. Um tempo de outrora e de hoje, sempre.

Baptista-Bastos
NO INTERIOR DA TUA AUSÊNCIA
Ed. ASA / Porto, 2002                                     


  
Ficha do Artigo
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Edição:

N.º 119
Ano 12, Janeiro 2003

Autoria:

Serafim Ferreira
Escritor e Crítico Literário, Lisboa. Colaborador do Jornal A Página da Educação.
Serafim Ferreira
Escritor e Crítico Literário, Lisboa. Colaborador do Jornal A Página da Educação.

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