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Da vida, ao longo da aprendizagem

A vida ao longo da educação e a educação ao longo da vida.

O crescente protagonismo do conceito de “formação ao longo da vida” já só vagamente remete para a matriz de que efectivamente procede — o ideal de educação ao longo da vida, ou educação permanente, consoante traduzíamos do inglês ou do francês. Pelo menos desde o Relatório Faure (“Aprender a Ser”), publicado há trinta anos, a par de outros documentos da UNESCO, que o princípio da educação permanente foi considerado a “pedra angular” do ideal de “cidade educativa” e a “ideia mestra” para as políticas educativas futuras. A profunda reconceptualização que vem ocorrendo ao longo das últimas décadas, só superficialmente retornando à designação de “educação ao longo da vida”, coincidiu já, entre nós, com a sua descoberta por políticos, economistas e gestores; não só desconhecendo ou desvalorizando a genealogia do conceito, com a vantagem de se basearem numa certa diferença linguística a partir de traduções que privilegiaram a língua inglesa (“lifelong education”), mas também e sobretudo a partir do momento em que alguns dos mais importantes pressupostos políticos, assumidos pelos textos fundadores, foram revistos ou mesmo denegados.
Com efeito, o conceito de educação ao longo da vida conferia centralidade à educação, não apenas em termos pedagógicos mas também enquanto objecto de políticas sociais e, portanto, à sua provisão e organização enquanto direito humano básico, responsabilizando o Estado pela garantia das condições de igualdade de oportunidades. Neste sentido, a educação ao longo da vida revelou-se um dos pilares educativos do Estado-Providência, articulando-se com as políticas sociais e redistributivas mais típicas dos diversos modelos que assumiu em vários países após a II Guerra Mundial. O ideal de educação ao longo da vida, conferindo sentido e integrando diversas modalidades e formas de educação / formação, institucionalizadas ou não, assumiria como objectivo último a educação para a participação e a cidadania democrática, para o desenvolvimento e a transformação, para o esclarecimento e a autonomia dos cidadãos. Sem poder, neste momento, inventariar criticamente as notáveis realizações alcançadas e também as dificuldades e os fracassos que foram registados por políticas de signo progressista e social-democrata, especialmente na Europa dos “gloriosos 30 anos”, bem como as importantes mutações entretanto operadas na economia e na sociedade, refira-se apenas que uma das orientações alternativas que hoje mais protagonismo vem alcançando se baseia exactamente na reforma neoliberal do Estado-Providência; ou seja, no esbatimento do papel do Estado na educação em favor da prestação de serviços educativos / formativos mais ou menos organizados segundo as regras do mercado. Assim dirigidos não apenas a “utentes” mas especialmente a “clientes” e “consumidores”, de acordo com as suas necessidades individuais e as suas estratégias competitivas, com vista à construção de biografias formativas hiperracionais e à aquisição de competências para competir. A educação fica para trás face à insistência na formação (profissional, contínua…) e na sua maior capacidade de modernização e adaptação funcional à economia e ao mercado. Porém, a responsabilização individual, a racionalidade económica, o “ethos” mercantil, forçaram não apenas a uma deslocação da educação para a formação, mas também desta para a aprendizagem. A “aprendizagem ao longo da vida” surge assim como máxima político-educativa decorrente da declaração de “falência” do Estado-Providência, predominantemente orientada para a resolução dos problemas de competitividade económica e para o reforço das vantagens competitivas de indivíduos, empresas e nações. Como se a re-escolarização da sociedade, em toda a sua latitude e longitude, fosse uma solução, a partir de um fenómeno de “pedagogização” quase totalitária da esfera individual e colectiva, assente na crença pedagogista de que os nossos maiores problemas se devem à crise da educação e da escola e que só pela via de um novo paradigma de aprendizagem, que em primeiro lugar responsabiliza o indivíduo e o atomiza, e cujo maior sucesso dependerá da sua efectiva utilização vantajosa, i.e., contra outrém, poderemos finalmente responder aos “desafios” da globalização e da “sociedade da informação e do conhecimento”.
As perspectivas mais pragmatistas e tecnocráticas de formação e aprendizagem ao longo da vida vêm, de facto, subordinando a vida a uma longa sucessão de aprendizagens úteis e eficazes, instrumentalizando a vida e amputando-a das suas dimensões menos mercadorizáveis, esquecendo ou recusando a substantividade da vida ao longo da aprendizagem.


  
Ficha do Artigo
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Edição:

N.º 115
Ano 11, Setembro 2002

Autoria:

Licínio C. Lima
Instituto de Educação e Psicologia, Univ. do Minho
Licínio C. Lima
Instituto de Educação e Psicologia, Univ. do Minho

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