José Eustáquio Romão acompanhou de perto o pedagogo brasileiro Paulo Freire ao
longo de onze anos, entre 1986 e 1997 - ano da sua morte -, e percorreu com ele
todo o Brasil lutando pela democratização e universalização do ensino.
Convidado recentemente pelo Instituto Paulo Freire de Portugal, da Faculdade de
Psicologia e de Ciências da Educação da Universidade do Porto, para ministrar
um curso sobre a pedagogia e a metodologia freiriana, a Página aproveitou a
oportunidade para conhecer melhor o passado comum destes dois companheiros de
estrada e para ficar a saber algo mais do que se passa, actualmente, no Brasil,
onde, por exemplo, parece que o ensino superior está à venda.
Conte-nos um pouco do seu percurso pessoal e profissional e em que contexto
conheceu Paulo Freire. Sei que antes de se tornar professor universitário
começou por dar aulas no ensino básico...
Sim. Fui professor de educação básica - no Brasil chamamos-lhe fundamental
-, do ensino secundário - designado ensino médio - e actualmente lecciono no
ensino superior. Mas a experiência do ensino fundamental foi tão importante
para mim que continuo a trabalhar nele ainda hoje, aplicando na prática a minha
produção teórica em turmas-piloto. Algo como um laboratório, no bom sentido...
Dou também aulas de Graduação e Pós-graduação em Educação. Ou seja, de certa
forma continuo a percorrer os três níveis de ensino.
Antes de me ter tornado professor licenciei-me em História, tendo-me mais tarde
doutorado em História Social, e era ainda muito novo quando fui convidado para
dirigir a Secretaria de Educação do munícipio de Juiz de Fora, a segunda cidade
do Estado de Minas Gerais. Depois de quatro anos a lidar com a questão da
gestão educacional acabei por sentir necessidade de sistematizar as minhas
ideias a respeito da educação, e foi nessa altura que fiz um segundo
doutoramento, em História e Filosofia da Educação, no qual me debrucei
particularmente sobre gestão e administração escolar.
Nessa altura, em 1986, o Brasil tinha cerca de cinco mil municípios - hoje
conta com cerca de seis mil -, mas os sistemas municipais de educação tinham um
carácter meramente executivo. Foi por essa razão que eu e um grupo de colegas
iniciámos um movimento no sentido de criar a União Nacional dos Dirigentes
Municipais de Educação, que se tornou na maior organização educacional básica
do país e que o Ministério da Educação passou a ter de respeitar e ouvir. Não
queríamos apenas ser o que apelidávamos de "tarefeiros" da educação, mas
participar na formulação das políticas educativas. Foi dessa maneira que
percorri todo o Brasil, visitando cerca de três mil municípios, e conheci o
Paulo Freire, que era secretário de educação no estado de São Paulo, do qual já
conhecia os escritos mas não a personalidade.
Isso aconteceu ainda durante a ditadura militar?
Nessa época estávamos já na transição para o regime democrático. Durante a
ditadura lutei, desde adolescente, na resistência política. Quase fui frade
dominicano, ordem que no Brasil era considerada como uma corrente progressista
da igreja, de esquerda, e que foi muito perseguida pela ditadura militar. Ao
longo desse período fui preso cinco vezes e perdi alguns amigos na prisão.
De que forma essa experiência com o Paulo Freire o influenciou na sua vida
pessoal e profissional?
Quando foi criada a União Nacional dos Dirigentes Municipais de Educação, da
qual eu me tornei presidente, ele tinha voltado recentemente ao Brasil do
exílio e foi designado presidente honorário. Nessa altura foi também criada a
Comissão Nacional de Educação, da qual ele foi eleito presidente e eu
vice-presidente, e iniciamos aí a nossa trajectória comum, que durou até à sua
morte. Antes de o conhecer pessoalmente eu já tinha analisado a obra dele, mas,
tendo em conta a minha formação marxista, admito que mantinha uma certa
desconfiança... Disse-lhe que achava as ideias dele interessantes, mas que,
mais cedo ou mais tarde, nos iríamos debater. Ficámos muito amigos.
No que toca às minhas dúvidas, principalmente no que diz respeito aos primeiros
textos dele - A Pedagogia do Oprimido, por exemplo -, fui-me apercebendo que
nos debates que mantínhamos ele dialogava não só comigo mas também com ele
próprio. Aliás, na minha opinião, a obra do Paulo Freire - e ele escreveu mais
de trinta livros - resume-se a um só livro, que ele foi reescrevendo
sucessivamente. Confesso que durante muito tempo eu reagi como um adolescente,
"vigiando" o Paulo Freire, tentando verificar se ele iria entrar em
contradição. Mas durante o tempo que convivi com ele, entre 1986 e 1997, posso
afirmar que não consegui detectar quaisquer contradições no seu discurso. Era
surpreendente... Ele não alterou a minha maneira de pensar; alterou a minha
vida.
A alfabetização como um acto político
Em que medida os princípios e a metodologia defendidos por Paulo Freire
continuam válidos?
Em primeiro lugar, ele insistia com as pessoas mais próximas que não pretendia
formar discípulos, porque isso contrariava os seus princípios, e explicava que
a nossa contribuição para o trabalho dele passava sobretudo pela criação de uma
rede colectiva à escala mundial que reinventasse caminhos e alternativas para a
defesa do que ele chamava os "esfarrapados do mundo". Em qualquer circunstância
onde existisse opressão, a nossa tarefa seria inventarmos instrumentos para
acabar com ela. Ele falava muito em recriar, reiventar, refazer... dizia mesmo
que era o seu sufixo preferido. É nessa medida que ele continua sempre actual,
porque nenhuma das categorias que desenvolveu foi entendida como absoluta, quer
no sentido da resolução de questões científicas ou de militância política.
A dimensão política do trabalho pedagógico de Paulo Freire não fará com que
ele ainda hoje seja visto como um pedagogo subversivo?
Sim, de certa maneira ele pode ser entendido como subversivo. Quando se deu o
golpe militar em 1964, iniciado precisamente na minha cidade - Juiz de Fora -,
uma das primeiras pessoas que o exército prendeu foi o Paulo Freire. Nessa
época, organizaram-se no sertão brasileiro as ligas camponesas de inspiração
comunista. E o Paulo Freire, apesar de não ter estudado Marx, tinha algumas
noções da teoria marxista, comunista e socialista porque convivia muito de
perto com as lideranças camponesas. É nesse contexto que a direita brasileira,
através dos militares, tenha visto nele, mais do que no Francisco Julião, líder
das ligas camponesas, ou nos líderes dos partidos comunista e socialista, a
principal fonte de perigo.
Por uma razão simples: na perspectiva dele - e essa é a grande diferença entre
Paulo Freire e outros pedagogos - a alfabetização deve ser entendida ao mesmo
tempo como um acto de conhecimento e como um acto político, e que para lá
chegar é necessário conseguir "ler" a realidade circundante, numa perspectiva
política. A base para este processo não é a aula tradicional, mas o que ele
designou por círculo de cultura. Um círculo de pessoas que fala da sua
existência, da sua vida, das suas dificuldades, a partir do qual emergem
palavras geradoras e se chega à construção silábica. Ou seja, a alfabetização
constrói-se sobre a discussão política. Se ele tivesse conseguido realizar dez
mil círculos de cultura possivelmente o golpe não teria acontecido, porque o
país seria outro.
Apesar desse cariz revolucionário ele era, na essência, um alfabetizador das
classes populares...
O Paulo Freire era um educador do nordeste, que é a região mais pobre do Brasil
e uma das mais pobres do mundo, e a sua proposta pedagógica de alfabetização
começou por ser testada junto de 300 camponeses da povoação de Angicos, no
final da década de 50, através da qual ele conseguiu, juntamente com a sua
equipa, alfabetizar a maioria dos habitantes em apenas 42 horas de trabalho. O
presidente da república da altura, João Goulart, ficou tão impressionado que
veio assistir à conclusão do curso e convidou-o pessoalmente para coordenar a
campanha nacional de alfabetização.
Mas a ditadura acabou com essa possibilidade. Ele ficou 72 dias preso, foi
torturado, conseguiu evadir-se e refugiou-se na embaixada da Bolívia, país no
qual se exilou. Pouco tempo depois da sua chegada, porém, verificou-se também
ali um golpe de estado, o que o levou a fugir para o Chile. Lá, foi recebido
pelo ministro da agricultura, que o convidou a integrar o ministério da reforma
agrária e a coordenar a campanha de alfabetização dos camponeses chilenos. Foi
neste país que ele conseguiu pôr em prática as suas ideias e é nessa altura que
escreve A Pedagogia do Oprimido. Para o Brasil tudo se perdeu, mas para o mundo
tudo se ganhou, porque foi nessa altura que o Paulo Freire adquiriu um estatuto
internacional.
É essa visão política da educação que faz com que a obra dele não seja mais
divulgada?
É natural que as elites tenham receio das ideias dele, porque se tudo isto for
entendido como uma forma de subversão então ele foi um subversivo de primeira
categoria. Depois, porque a própria proposta metodológica também é diferente:
não existe aula - substituída pelo círculo de cultura -, nem professor - papel
desempenhado pelo animador cultural, onde o processo de ensino se transforma
num processo de aprendizagem. Aliás, esse é um dos grandes princípios da
pedagogia freiriana: ninguém ensina nada a ninguém, as pessoas aprendem com
elas próprias através de um esforço colectivo e de mediatização da realidade.
Ou seja, aprende-se ao incorporar as informações no próprio projecto de vida
individual e colectivo, interpretando politicamente a realidade. E isto é um
perigo, porque interpretar criticamente o mundo significa "virá-lo do avesso"
através da discussão.
Há algum "segredo" neste método?
Quando se presencia um círculo de cultura, à primeira vista poderá pensar-se
que dali não sairão resultados palpáveis. Mas a verdade é que o Paulo Freire
conseguiu comprovar na prática que esta metodologia se revela eficiente na
aprendizagem da leitura e da escrita. Isso aconteceu nomeadamente no Chile, em
Cuba - na altura da revolução o país tinha uma das mais altas taxas de
analfabetismo da América Latina e em apenas um ano ela baixou praticamente para
zero -, na Nicarágua e em alguns países de África.
E neste processo não existe qualquer segredo. O segredo é que as pessoas
incorporam com muita rapidez no seu intrumental de competências e de
habilidades aquilo que elas vêem como uma forma de resolver um problema prático
da sua vida. A aceleração do processo de aprendizagem está na própria pessoa e
não na eficácia do método.
Brasil: a educação vista como um negócio
Um professor não pode ser neutro. Concorda com a afirmação?
Não há maneira de ser neutro. A neutralidade implica a defesa do status quo; e
se o status quo implica desumanidade ficar indiferente a isso é ser desumano.
Nessa medida, a neutralidade é uma posição que só favorece a situação
hegemónica e dominante.
Como vê a crescente tentativa de comercialização da educação?
É um problema que estamos a viver actualmente no nosso país. O Brasil é um país
emergente, com uma população que se aproxima dos 200 milhões de habitantes e
com um enorme défice educacional, pelo que assistimos a essa progressiva
privatização com especial violência, através da qual a iniciativa particular
está a vender a educação a preços de ocasião aos marginalizados da escola.
Depois de me reformar da universidade pública, na qual trabalhei durante trinta
anos, fui convidado para dar aulas numa universidade privada, na qual,
juntamente com um grupo de formandos, estou a desenvolver precisamente uma
pesquisa sobre este tema.
E o que tenho vindo a observar é que se há quatro anos havia 3700 alunos na
licenciatura da minha universidade, hoje em dia existem 32 mil. A universidade
mais próxima, que tinha cerca de dois mil alunos, hoje tem 50 mil. E nós
sabemos que o aumento da matrícula no ensino secundário, que era até há uns
anos irrisória num país como o nosso - cerca de 2,3 milhões de alunos -, no
final de 2001 atingia os 8,7 milhões, o que significa que num prazo máximo de 3
anos a pressão estará posta no ensino superior.
O ensino secundário é um sector privatizado no Brasil?
O ensino fundamental, correspondente às oito primeiras séries (anos lectivos),
é 97% público, mas o ensino secundário pertence quase exclusivamente à
iniciativa privada. A constituição brasileira refere que no momento em que o
ensino fundamental estiver universalizado o Estado terá de começar a abrir
oportunidades no ensino secundário. Mas o ensino privado, que actualmente está
em força no ensino secundário, está a migrar para o ensino superior.
Para se ter uma ideia deste processo, conheço alguém que actualmente é dono de
uma rede privada de ensino secundário e que acaba de fazer uma aliança com uma
transnacional do ensino norte-americano com o objectivo de, até 2006, construir
cinquenta universidades e de atingir as cem mil matrículas.
Desta maneira, o ensino superior brasileiro não só está a caminhar para a
privatização, como para uma oligopolização. Calculo que actualmente cerca de
67% do ensino superior é privado e tenho a impressão que daqui a algum tempo
será dominado por cinco, no máximo oito grandes proprietários. É um grande
negócio no país.
Os professores estão a dar-se conta desse processo? Mobilizam-se de alguma
forma?
Os professores do ensino público reagem bravamente a esta situação, mas como o
ensino superior público não dispõe de vagas e as universidades privadas chegam
a pagar dez vezes mais... No fundo, o que o ensino privado brasileiro tem vindo
a fazer é comprar os "passes" dos professores do ensino público. Esta situação
já não perdura porque, na realidade, tudo não passava de um movimento inicial
de compra de "passes", especialmente dos professores mais combativos, mais
conscientes e lutadores pela defesa do ensino público. Quem trabalha no ensino
público sabe disso. O nosso grande dilema actual é questionarmo-nos se para
interromper essa progressão a luta deve ser iniciada de fora para dentro ou de
dentro para fora. Mas é, sem dúvida, uma luta desigual.
Entrevista conduzida por Ricardo Jorge Costa
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