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O mercado da fé

Nascido numa família da pequena burguesia portuense, recebi uma educação religiosa católica rudimentar que não foi além da primeira comunhão. Desde muito cedo que os assuntos da fé se manifestaram esquivos a todos os meus esforços de racionalização. Acreditando que a fé é coisa de se ter ou não ter, muito cedo a perdi sem que, na verdade, alguma vez a tivesse ganho.

A história ensina-nos que a costa oriental de África é espaço de cruzamentos de culturas e religiões. Chegado a Mandlakazi, rapidamente me confrontei com a vitalidade das igrejas que, em concorrência quase mercantil, disputam as almas. Terra de africanos, com uma bem antiga presença de indianos de confissão mulçumana e uma colonização portuguesa mais recente que, como em todos os outros lugares por onde passou, carregou consigo o cristianismo católico, nela encontrei sempre gente com fé. Neste lugar telúrico da identidade moçambicana todas as dúvidas em relação à existência de Deus, talvez melhor, dos deuses, dissipam-se. Construídos pelos homens e pelas mulheres, ele(s) existe(m) e vive(m) nas suas cabeças, preenchendo uma boa parte das suas vidas.
Como em outros domínios, o engenho da sobrevivência também é aqui jogado, com vivaz pragmatismo, pelos moçambicanos negros. Sujeitos a processos, nem sempre doces nem encantados, de evangelização cristã, principalmente católica, nunca abandonaram as suas crenças e práticas ligadas ao culto dos antepassados defuntos. Hoje, libertos da pressão colonial e da experiência revolucionária - a primeira impondo o deus monoteísta cristão, a segunda tentando eliminá-lo -, negoceiam a sua adesão a uma ou outra igreja, no quadro do que se pode classificar como o segundo andar do seu edifício religioso. Bem adaptadas aos tempos que correm e mais flexíveis com as práticas e os valores africanos tradicionais, as inúmeras igrejas cristãs desalinhadas de Roma estão em manifesto crescimento, quase sempre em prejuízo desta.
Em face disto, a posição e a acção das duas grandes religiões monoteístas presentes neste espaço moçambicano são bem desiguais. O islamismo está, algo lentamente mas de modo sustentado, a ganhar adeptos, centrando-se nas actividades de proselitismo ligadas à educação religiosa. Também nestas paragens este triunfo não pode deixar de se relacionar com o colapso de aspectos relevantes do projecto da modernidade, configurando uma resposta contra-hegemónica reaccionária à actual globalização. Olhando para o catolicismo, encontramo-lo a jogar à defesa, remetido às tarefas de culto, de caridade e de educação. Tendo acompanhado de muito perto o trabalho de homens e mulheres da Igreja romana, ao mesmo tempo que constatava o meritório e desinteressado apoio aos mais necessitados, desassossegava-me a ausência de um discurso e de uma prática emancipatórios. Num país e num continente em que há tanto para criticar e para propor, falta a esta igreja uma centelha de teologia da libertação. Quando, ao contrário do que acontece um pouco por toda a América Latina, não existem movimentos progressistas, social e politicamente implantados, é dramático que a Igreja Católica seja incapaz de despertar os oprimidos, federando e organizando, se necessário, todas as vontades na luta contra as iniquidades sem fim e, fatalmente, contra aqueles que, localmente, são os gestores e beneficiários maiores da (de)ordem neoliberal.


  
Ficha do Artigo
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Edição:

N.º 111
Ano 11, Abril 2002

Autoria:

Fernando Bessa Ribeiro
Univ. de Trás-os-Montes e Alto Douro (UTAD), Pólo de Chaves
Fernando Bessa Ribeiro
Univ. de Trás-os-Montes e Alto Douro (UTAD), Pólo de Chaves

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