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A segunda Pele

Gostaria que os pais se sentissem à vontade na escola, pois a escola é de todos e não apenas dos professores. A escola não é constituída apenas pelo edifício. Ela resulta do trabalho simultâneo de pais, professores e alunos. Deve haver uma cooperação educativa entre a família e a escola.
Este discurso de uma directora de escola do 1º ciclo, em reunião geral de escola no início de ano, dificilmente poderia ser mais amigável e apelativo para os pais. Porém, nem sempre o que parece é. Uma pesquisa etnográfica por mim realizada nos anos 90 em escolas públicas do 1º Ciclo revelou a existência de três tipos de docentes quanto ao seu posicionamento face às famílias e às comunidades: 1) as que demonstravam uma prática favorável ao estreitamento de relações; 2) as que demonstravam uma prática oposta àquele estreitamento; e 3) as que, não tomando uma posição clara, acabavam por se juntar àquela que predominava em cada escola. Todas estas docentes partilhavam um discurso público positivo face ao envolvimento familiar, o qual contrastava com alguns discursos privados (entre colegas, por exemplo) e ainda mais com diversas práticas. Aqui o maior contraste registava-se junto de algumas directoras de escola, cingidas a um discurso em consonância com as directivas oficiais, mas encontrando formas várias de as curto-circuitar, para o que contribuía o poder informal que lhes advinha do cargo que exerciam (o qual se revelou longe de ser neutro). Uma das formas encontradas por algumas escolas visando manter distâncias sociais teve tradução em rituais aparentemente democráticos e reforçadores da comunicação, mas, na prática, conducentes a efeitos opostos. Constituem exemplos as reuniões plenárias (onde os usos do espaço e da linguagem contribuíam para vincar a posição docente) ou esquemas como o envio regular de mensagens escritas para casa a par de alguns (poucos) eventos colectivos, preparados sem a colaboração dos pais, o que, em conjunto, desincentivava a ida destes à escola. Mesmo as docentes mais a favor da relação escola-família-comunidade agiam sempre dentro de limites que não punham em causa o statu quo.
A salientar há ainda o facto do abismo que distinguia o discurso da prática de algumas das professoras ser encarado como algo de normal por todo o corpo docente. Parece estarmos aqui perante um efeito de naturalização da distância -amiúde incomensurável - entre retórica e realidade, por onde a reflexividade dificilmente mostrava conseguir abrir caminho.
Porquê esta situação? Dificilmente poderá ser encontrada uma resposta em termos individuais. Já a componente geracional se poderá revelar como elemento parcial de compreensão, dado todas as docentes da pesquisa terem sido formadas antes do 25 de Abril, num contexto de apelo à obediência, ao conformismo, à passividade. Uma segunda questão é se este tipo de reacção será intra ou inter-geracional e se não estaremos perante uma atitude mais geral de defesa num contexto onde, num sistema educativo centralizado e com uma pressão tão constante de normativos, os espaços da escola e, em particular, da sala de aula, acabam por constituir o único refúgio para os docentes (onde pais e outros actores sociais são percepcionados como intrusos, tanto mais que a formação inicial e contínua de professores continua a lidar de uma forma muito incipiente com este tipo de problemática). A ser assim, não deixará de constituir motivo de reflexão o facto de nos depararmos com um sistema educativo - que é também político - fomentador da criação de um habitus profissional que, qual segunda pele, induz este grupo profissional a mostrar-se sempre politicamente correcto no seu discurso público, ao mesmo tempo que denota uma considerável capacidade de criatividade no modo como traduz, na prática, os diferentes tipos de normativos.


  
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Edição:

N.º 111
Ano 11, Abril 2002

Autoria:

Pedro Silva
Escola Superior de Educação de Leiria
Pedro Silva
Escola Superior de Educação de Leiria

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