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Assalto à democracia, por fora e por dentro
  1. Que podemos aprender com os crimes terroristas de 11 de Setembro último? Muita coisa seguramente. Mas coisas muito diferentes segundo o PROBLEMA que se formule a partir desses acontecimentos.
  2. Há, porém, pseudo-problemas, modos de pensar que, em vez de fazer avançar o conhecimento, contribuem tão só para bloquear essa possibilidade. Se nos perguntarmos, por exemplo, quais são as "causas" sociais ou políticas ou económicas ou religiosas ou culturais ou civilizacionais dos crimes de 11 de Setembro, não iremos longe, porque estamos a fazer a pergunta errada. Seja qual for a "causa" ou "causas" que elegermos (e.g. a política externa dos EUA, a desigual da distribuição da riqueza entre os países, o choque de civilizações e/ou de culturas, o fanatismo religioso, a "globalização", o imperialismo), o veredicto final será sempre o mesmo: "confusão de categorias", um vício de raciocínio que foi há muito identificado naquela ciência injustamente desprezada que dá pelo nome de lógica. O crime não tem "causas" desse tipo, apenas móbeis ou motivações (e alibis variados), porque é praticado por indíviduos concretos, não por sociedades, culturas, civilizações, classes, religiões. Julgando falar nas suas "causas" falamos, pois, no melhor do casos, nos seus móbeis.
  3. Mas se quisermos extrair desses atentados uma lição útil - digo, algo que contribua práticamente para tornar o mundo que vivemos um lugar menos violento e menos inseguro - o problema mais importante que se pode colocar prende-se não tanto com os móbeis ou motivações dos que planearam e executaram esses crimes, mas com as CONSEQUÊNCIAS desses crimes, sobretudo aquelas consequências que têm por efeito travar qualquer avanço para a democracia global, a única defesa eficaz contra a guerra global e o terrorismo global.
  4. Recapitulemos então os factos antes de passar às perguntas que vale a pena fazer. Em 11 de Setembro passado aconteceu algo que nunca tinha acontecido. Um grupo de comandos suicidas desviou quatro aviões comerciais de passageiros no espaço aéreo dos EUA, a mais poderosa nação-Estado do mundo de hoje. Dois aviões rumaram para a capital política deste país, Washington D.C, e dois para Nova Yorque, a sua capital económica e financeira. Servindo-se dos aviões como se fossem gigantescos mísseis, os piratas do ar atingiram o quartel-general das forças armadas dos EUA, conhecido por "Pentágono", símbolo do seu poderio militar, e as duas torres gémeas do "World Trade Center", um dos símbolos da sua supremacia económica e financeira. Dos atentados resultaram a morte de mais de 5000 pessoas (na sua grande maioria civis e representando mais de 60 nacionalidades) e a destruição total das referidas torres. Provávelmente por intervenção de alguns passageiros corajosos, um dos aviões sequestrados acabaria por despenhar-se antes de atingir o seu alvo em Washington, que tanto poderia ser o Capitólio, sede do Congresso (Senado e Câmara dos Representantes), como a Casa Branca, residência do Presidente da República desse país. A autoria do atentados, que ninguém reivindicou durante dois meses, foi atribuída à organização Al Qaeda, chefiada por um milionário saudita de nome Osama Bin Laden, já implicado em anteriores atentados a embaixadas e navios de guerra americanos. Este, porém, segundo o "Sunday Telegraph", admitiu, em recente gravação vídeo, ser o autor dos crimes de que era acusado e prometeu repeti-los sempre que tivesse oportunidade.
  5. Que mostram estes factos ? Que uma rede secreta bem oleada com milhões, protegida por vastas cumplicidades e constituída por homens resolutos e com tanto desamor à sua própria vida e à vida alheia (com excepção, talvez, da dos seus pais, namoradas, filhos e amigos de infância) como aquele que temos pelos mosquitos que esmagamos quando nos incomodam, pode espalhar o terror e o luto em qualquer ponto do planeta, mesmo que seja a mais poderosa nação-Estado do planeta. Mais: exactamente por ser a mais poderosa, poderá ser o alvo preferido deste tipo de terroristas, uma espécie de taluda para os mais audaciosos.
  6. Dou de barato que todos conhecem a reacção dos actuais governantes dos EUA aos atentados do 11 de Setembro: uma ofensiva policial e política para secar as fontes de financiamento da Al Qaeda e capturar os seus militantes, mas também uma guerra para derrubar o regime talibã do Afeganistão que dava guarida territorial e apoio logístico a essa organização e ao seu chefe. No momento em que escrevo (28 de Nov.), o regime talibã já não existe e Osama Bin Laden anda a monte.
  7. Tudo voltou então (ou está prestes a voltar) a ser quase como era antes do 11 de Setembro ? Citemos o correspondente do "Expresso" em N. Iorque, Tony Jenkins: "Na semana passada Bush assinou um decreto presidencial, criando tribunais militares para julgar terroristas, que vão contra a Constituição e as regras processuais. Só a ele caberá decidir quem deve ser apresentado a estes tribunais. Os promotores e juízes militares, que decidem o destino dos acusados, reportarão a ele, como comandante supremo das Forças Armadas. Os casos podem ser julgados à porta fechada. Provas pouco fundamentadas que um tribunal civil poderia considerar obtidas ilegalmente poderão ser permitidas. Para o réu ser condenado ou sentenciado à pena de morte, só é necessária uma maioria de dois terços dos membros do tribunal. E não terá direito de recurso. Ao mesmo tempo, o ministro da Justiça, John Ashcroft, continua a prender centenas de muçulmanos cuja identidade não revela. Ordenou às esquadras de polícia de todo o país para deterem todos os homens imigrantes islâmicos, àrabes e asiáticos do sul, entre os 15 e os 33 anos, que chegaram aos EUA nos últimos 2 anos. Um total de 5000 homens devem ser interrogados.Ashcroft também deu instruções às prisões para gravarem as conversas entre os detidos e os seus advogados" (24.11.01)
  8. Que mostram estes factos ? Que está em curso um assalto à democracia, num dos poucos lugares do mundo onde, à custa de tremendos combates, ela se conseguiu implantar. O assalto começou "por fora" e continua "por dentro. É o diagnóstico que muitos fazem, tanto à esquerda como à direita do espectro político americano. O mesmo Tony Jenkins escreve: "William Safire, antigo conselheiro do Presidente Richard Nixon e um dos mais respeitados pensadores republicanos do país, está revoltado:"Intimidados por terroristas e inflamados por um desejo de justiça sumária, estamos a deixar que Bush avançe para substituição do Estado de direito americano por tribunais arbitrários:" O historiador Alain Brinkley vai no mesmo sentido: "O habeas corpus acabou e o julgamento com júri também. Este é um dos mais extraordinários assaltos às liberdades cívicas na nossa História". Laura Murphy, directora da União Americana da Liberdades Cívicas, alerta para "a prova perturbante de que a Admnistração não está nada disposta a observar as garantias previstas nas leis e que são a essência da nossa democracia. E o "New York Times" grita que "o Sr. Bush está a corroer os próprios valores e princípios que procura proteger, includindo o Estado de direito". E talvez valha a pena dizer a quem ache que o desfecho deste conflito não nos diz respeito: se não conseguem imaginar o que seria o mundo se a democracia alguma vez fosse aniquilada nos EUA, experimentem ler o romance "O Tacão de Ferro" de Jack London. Já é velhinho, mas continua actual.

(Por motivos de programação da nova revista que sucederá a este jornal, o "Fidebeque" encerra neste número. Os outros dois redactores desta rubrica, António Lopes e Luís Souta, pedem-me que apresente em nome dos três as nossas despedidas aos leitores desta rubrica, agradecendo-lhes a atenção que nos dispensaram. Ao director e editores do jornal o nosso obrigado pelo acolhimento que aqui nos deram).

José Catarino Soares/ Instituto Politécnico de Setúbal

  
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Edição:

N.º 108
Ano 10, Dezembro 2001

Autoria:

José Manuel Catarino Soares
Instituto Politécnico de Setúbal
José Manuel Catarino Soares
Instituto Politécnico de Setúbal

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