Há alguns meses atrás, em Março de 2001, terminou a mediática
exposição do "Arquitecto Star" Rem Koolhas. A exposição - "Mutations" - decorreu
em Bordéus e teve a visita de numerosas personalidade do meio cultural mas também
da vida política e económica. É que a arte nos nossos dias tornou-se cada vez
mais uma operação mediática mercantil. E a exposição de Koolhas estava ali para
o manifestar, para o comprovar.
A operação artística custou 24 milhões de francos e escolheu-se como local os
enormes hangares de um aeroporto. Era o cenário perfeito para uma mega exposição
da sociedade espectáculo.
Mas não foi apenas o cenário, o envelope da exposição que explicitava esse carácter
virtual da arte. Era o seu próprio conteúdo que, duma forma cínica, mostrava
eloquentes fotografias com a mensagem bem explícita da exposição. Transcrevo
algumas legendas das imagens, incisivas mensagens expressas pela imensa panóplia
mediática do delírio informático num aeroporto tornado feira de espectáculos:
- O mundo é cada vez mais um shopping;
- A arquitectura é uma actividade mercantil que serve apenas para gerir,
racionalizar e alargar os fluxos de comunicação;
- O espaço é um contentor de lixo;
- A arte é uma burla;
A clareza destes 4 pontos em relação ao que realmente ali se
apresentou, era total. A apoteose do mutante, a defesa dos "não-lugares", o
apelo à velocidade e à desterritorialização deram a esta exposição uma lógica
cristalina. As imagens projectadas eram de cidades cheias de contentores, de
lixo amontoado, de miséria convivendo com a opulência, de escadarias rolantes
e tubolagens várias no interior de "não-lugares" de feérica publicidade.
Repare-se no paradoxo:
Tanto se alardoava que "o rei vai nú", que se fez dessa evidência, graças à
panóplia mediática da exposição, uma manifestação estetizada alienando-a da
sua própria motivação denunciadora. A perversidade consistiu numa subtil manipulação
que impôs a aceitação do horror e da catástrofe justificadas pela sublimidade
plástica de tal acontecimento artístico-cultural: a exposição!
Foi este, a meu ver, o exemplo de uma estética de sedução totalitária. Uma estética
que destrói os fundamentos éticos e se expõe como delírio estético artificialmente
gerado por experiências virtuais.
A exposição de Rem Koolhas é assim o "triunfo do consumismo" ou seja o delírio
de uma sociedade autofágica que festeja a sua própria ruína.
Em Bordéus, apenas alguns estudantes, professores e desempregados vieram manifestar-se
perante o despesismo da exposição e pela absurdidade de tão gigantesca fraude:
uma burla com a própria burla.
O cinismo da exposição do arquitecto Rem Koolhas advém da sua própria ambiguidade
e é também o espelho de cada um de nós nesta sociedade concreta em que vivemos,
onde a globalização do ultra-liberalismo consumista, nos deixa sem forças vitais
para lutar. Por isso, como ele próprio dizia em 1996, "devemos convertermo-nos
em irresponsáveis".
A exposição de Rem Koolhas é uma estranha metáfora que tem a ver com a cidade
do Porto.
Este modelo de cidade genérica que se desenvolve agora no Porto, tem até simbolicamente
uma casa da música de Rem Koolhas.
A sua concretização ficará também como símbolo de um despesismo delirante.
Neste momento o que sabemos é que esta "cidade genérica", com o seu projecto
de capital europeia 2001, que aparece aos nossos olhos, maquilhou fachadas,
gerou fluxos e forjou novos interesses para supermercados.
O metabolismo linear da cidade acelerou-se neste novo pulsar de circulações
em função de consumismos. Manifesta-se na vontade de destruir os espaços verdes
porque não se defende um metabolismo circular da cidade como ecosistema, caracterizada
por produzir e reciclar, no interior do seu território, o essencial da sua sustentabilidade
ecológica. Isto é o que caracteriza o urbanismo termodinâmico de um urbanismo
regenerativo, que tem um entendimento da cidade não como máquina mas como um
organismo vivo. Em nome de um esteticismo arquitectónico sem ética - urbanismo
"world cities" ultra-liberal - ocultam-se lógicas especulativas.
Na cidade do Porto, com este mesmo tipo de urbanismo referencial, pretendem-se
ocupar terrenos do parque da cidade. Em nome de minimalismos neo-modernos apagam-se
memórias da cidade na Cordoaria e avança-se, em nome da velocidade, ameaçadoramente
contra as árvores da praça do Marquês.
Em nome dos fluxos, da velocidade, das incertezas de conveniência, vai-se impondo,
com certeza, a segregação, a especulação, a globalização neo-liberal.
Os projectos de renovação do Porto capital europeia da cultura resolveram os
problemas estruturais da cidade?
Houve uma oportunidade de se apoiarem projectos que pudessem realmente levar
a cabo o início de um eco-urbanismo. Porém, o urbanismo "renovador" apenas veio
maquilhar as mazelas estruturais: a segregação social continua e agrava-se.
Nos bairros do Aleixo e S. João de Deus a degradação urbana é degradação humana.
Os problemas da poluição, o agravamento do trânsito, as casas vazias para especulação,
etc. são problemas essenciais que não encontraram qualquer espécie de solução.
A arquitectura e o urbanismo restringiram-se a paliativos, ao foguetório do
espectáculo de fachadas...
Mas existe uma alternativa ao mundo shoping. A alternativa é o desenvolvimento
ecologicamente sustentado, a justiça social e a democracia participada.
A nova experiência perceptiva do território da sociedade pós-industrial deste
paradigma emergente, cada vez mais sensível às questões ecológicas, é que o
território cultural e a natureza não são antagónicos. O ciclo regenerativo exige
cidades ecológicas (eco-polis), exige eco-desenvolvimento.
São várias as iniciativas neste sentido. O projecto do professor Ribeiro Telles,
Plano Verde para a Cidade de Lisboa, é uma proposta que marca uma diferença
de atitude do urbanista face à irresponsabilidade defendida por Koolhas.
Felizmente que a sociedade não é uma identidade estética. As contradições sociais
e os diferentes paradigmas criam metamorfoses no território. Surgiram já novas
gerações de arquitectos e urbanistas que propõem alternativas sociais e territoriais.
Porto Alegre e Curitiba, no Brasil, são exemplo mais conhecidos de várias intervenções
mundiais de eco-urbanismo. O livro de Miguel Ruano, "Eco-Urbanismo", assinala
sessenta projectos. A Carta Europeia de energia solar na arquitectura e planeamento
urbano, foi apoiada pelos nomes mais significativos da arquitectura e do urbanismo
contemporâneo (Renzo Piano, Richard Rogers, Gustav Peichl, Frei Otto, F. Jourda,
Thomas Herzog, etc...).
Grandes projectos territoriais como o vale de Emscher, na Alemanha e o vale
de Toronto, no Canadá, mostram a possibilidade de ecodesenvolvimento numa vasta
área territorial.
Teremos que substituir globalização por planetarização.
Como dizia Joseph Beuys, "a revolução somos nós, cada um de nós. Devemos semear...
transformar a vida numa obra de arte" porque "todo o homem é um artista".
Toda a preocupação de Joseph Beuys era reactivar os sentidos para uma relação
mais profunda com a natureza. Beuys procurou com as várias acções e instalações,
ampliar a noção de arte; a escultura social era essa maneira de alargar da pessoa
à sociedade, através de acções simbólicas de transformação pessoal e colectiva.
Reactivar os sentidos era querer todo o tempo para desenvolver a comunicação
com a natureza, a paisagem, o lugar.
Esta é a terapêutica necessária para superar o envolvimento virtual e esquizofrénico
em que a velocidade e a pressa pretendem desterritorializar e despersonalizar.
A consciência sensorial é essencial para a formação de uma identidade da pessoa;
capaz de liberdade, de decisão, de transformação dos condicionalismos. ... o
lugar que enraíza a cultura e não o momento que apenas a dispersa.
Estas noções essenciais levaram Beuys a desenvolver o início da célebre operação
de plantação de 7.000 árvores. Plantou a primeira árvore diante do museu, em
Kassel, num gesto de repovoamento florestal da cidade e de afirmação da "natura"
como essencial para a cultura.
Beuys mostrou ideias fundamentais para estas acções com árvores. ... que elas
manifestavam o interesse pelo meio ambiente, mostravam a metamorfose de uma
cidade, com as copas crescendo sobre os cidadãos, oferecendo uma multiplicidade
de imagens temporais, com o inverno ou o verão, mostrando a vida na polaridade
com a morte.
Este ano, em que se comemoram os 90 anos do nascimento de Joseph Beuys e os
20 anos da sua morte com uma exposição sobre ele, com o tema DEFESA DA NATUREZA,
surgiram grupos de várias universidades que decidiram prosseguir a obra de Beuys.
Esta exposição mostra-nos um filósofo artista que se coloca numa posição diferente
do arquitecto Rem Koolhas.
Beuys procede de um modo alquímico. De materiais simples vai-nos mostrando o
sentido duma regeneração possÌvel. Com sementes, com árvores, vai explicitando
os valores éticos numa estética em que todos os homens são artistas. A criação
da natureza é a criação do homem. Vinte anos após a morte de Beuys, renasce,
em vários países, esta vontade de retomar o gesto de Beuys.
Em várias cidades iniciaram-se plantações de árvores com o mesmo sentido ético
que presidiu à plantação dos castanheiros que Beuys plantou em Kassel: um acto
de vida, um acto de consciência, uma atitude pedagógica.
Aquele tipo de "acções" resultaram como obra de arte que vive na cidade, que
floresce como gesto ecológico e que foi também um trabalho de ruptura com a
passividade, a resignação e a ignorância sobre a natureza, pela afirmação da
autonomia e responsabilidade pessoal na democracia.
Também eu, que não quero o mundo transformado cada vez mais num shopping e a
arte transformada numa burla, gostaria bem, no dia Mundial da Árvore, de juntar-me
a todos aqueles que queiram plantar uma árvore num lugar público desta cidade.
Deste gesto pela vida, talvez se possa gerar uma acção social pública que verdadeiramente
se oponha a esta cidade-mercadoria, que se está a construir diante dos nossos
olhos.
Jacinto Rodrigues / Faculdade de Arquitectura do Porto
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