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Os desafios da diversidade e das novas tecnologias

RESUMO
O impacto da crescente diversificação étnica, cultural e social e das novas tecnologias da informação e da comunicação (NTIC) nas escolas e as pressões a favor de mais e melhores oportunidades educativas para todos, constituem questões que devem alimentar, urgentemente, debates e acções conducentes a novas dinâmicas de formação inicial e contínua de professores, a culturas docentes reflexivamente centradas nas diferentes configurações da sociedade em que vivemos e à afirmação de uma (nova) profissionalidade docente.


As novas tecnologias da informação e comunicação (NTIC) e a crescente diversidade humana nas sociedades mais urbanizadas, constituem fulcros - talvez os mais importantes - geradores de mudanças em todos os domínios sociais. A educação é um dos domínios onde, por efeito desses factores, as mudanças seriam mais necessárias. Mas é onde parecem mais lentas e contraditórias. É incontestável que aquela diversidade e a disponibilidade de NTIC, cada vez mais rápidas e globais (internet, rede alargadas de televisão, computadores, programas informáticos, etc), têm influenciado a actuação prática dos professores. Contudo parece não terem ainda ocorrido alterações significativas, sugeridas por aquelas mudanças, do quadro ideológico da acção dos professores. Apesar da crescente facilidade no acesso, tratamento e produção de informação através das NTIC, não tem sido fácil o reconhecimento pela escola e pelos professores de que tal processo os coloca cada vez mais longe da centralidade que ocupavam na distribuição da informação. Só muito lentamente têm vindo a emergir novas formas de tratamento do conhecimento escolar capitalizando fontes e processos mediáticas.

Quanto à crescente diversidade humana nas escolas é ainda demasiado percepcionada de modo problemático, etnocêntrico e assimilacionista. Problemático porque os alunos diferentes - sobretudo os pertencentes a minorias étnicas - estão, frequentemente, associados a comportamentos desviantes, e a sua presença na sala de aula, associada ao seu direito ao sucesso educativo, coloca em questão as estratégias de ensino dos professores consolidadas em contextos escolares monoculturais. Etnocêntrico porque predomina a dificuldade em percepcionar o aluno culturalmente diferente de acordo com referências no contexto da sua cultura. Consequentemente, assimilacionista porque a gestão do currículo é orientada para a exclusiva assimilação de conhecimentos, atitudes e valores da cultura dominante, ignorando os principais traços identitários dos alunos, cultural e etnicamente diferentes. As mudanças orientadas para a resistência a estas atitudes são ideológicas e, por isso, lentas. Implicam processos institucionais e pessoais estruturados e continuados que coloquem em questão práticas docentes anteriores orientadas para contextos monoculturais. Implicam a consciencialização acerca das relações de si próprio com outros diferentes e desafiem atitudes de análise e reflexão acerca da nova realidade social e do papel dos professores na promoção de mais e melhores oportunidades de aprendizagem para todos os alunos.

Não se pretende, no entanto, neste texto, centrar a atenção só na diversidade entendida étnica e culturalmente, mas em toda a diversidade humana definida pelas diferenças de cada pessoa, dos grupos a que pertence e dos arranjos locais, regionais, nacionais ou internacionais em que se integra, participa e intervém. Ou seja, o respeito pela diversidade e a acção para a igualdade de oportunidades educativas inscreve-se na promoção de um sentido de solidariedade, de participação e de intervenção nas comunidades a que cada um pertence enquanto condições para o exercício de cidadanias É nesse sentido que se orienta o essencial da revisão curricular, proposta pelo D.L. nº 6/2001, para o ensino básico.

Dessa proposta emergem alguns aspectos estruturantes: a clara orientação do currrículo para a educação para a cidadania e para os princípios e valores que a sustentam; a explicitação das competências essenciais, à saída da educação básica, que orientam para o exercício dessa cidadania; logo, o enfoque nos efeitos sociais dos produtos do currículo e, para tudo isso, os fortes desafios à flexibilização e à transversalidade curricular. Ou seja, esta proposta de revisão, se levada a bom termo, é mais reformista que a reforma curricular do início dos anos 90. Essencial agora é actuar em relação às condições para a realização de tal currículo; ter em conta que esta revisão apela, sobretudo, a mudanças centradas nos processos e nas atitudes ideológicas dos principais responsáveis pela gestão do currículo, em particular, dos professores.

Novos sentidos para as competências docentes

A realização de perspectivas de ensino centradas no ideal da igualdade de oportunidades; no valor da diversidade humana; na importância dos novos meios de acesso, selecção, tratamento e uso da informação para fins pessoal e socialmente úteis; nas finalidades curriculares orientadas para uma educação para a cidadania integradora destas variáveis, apela a programas e acções de formação que orientem, em novos sentidos, as competências docentes.

No seu conjunto as competências esperadas dos educadores e professores integram-se num perfil de docente intelectual, reflexivo e crítico, com a sabedoria para ler a sociedade em que vive e para que está a educar. É, evidentemente, um perfil desejável em qualquer circunstância, mas, sem dúvida, o processo de globalização e as diversidades que transporta reforçam a sua necessidade. É um perfil que inclui capacidades e atitudes para interpretar a sociedade da informação em diversos níveis. Por um lado, na sua face mais visível que são as grandes possibilidades técnicas que oferece para cada um poder intercomunicar a nível global, mas, por outro, na sua face menos evidente que é a complexidade social, económica, política e ideológica que ela representa. É uma leitura crítica que dá particular atenção a aspectos como:

  • os problemas e questões sociais vistos em perspectivas local, regional, nacional, internacional e mundial e à profunda interdependência entre esses níveis;
  • a situação dos diferentes grupos humanos na sociedade próxima e global;
  • o facto de a sociedade da informação, os meios técnicos que mobiliza e as possibilidades que oferece traduzirem interesses e objectivos diversificados e, muitos, eticamente contraditórios;
  • a necessidade de tornar inadiável a ligação segura da escola com as NTIC e o facto de a importante influência da sociedade da informação em termos educativos, não resultar só da quantidade e da velocidade de informação disponível mas, sobretudo, dos critérios qualitativos de suporte às escolhas e à utilização da informação útil.
  • a distribuição desigual da informação na sociedade e na escola determinada por critérios culturais, sociais, económicos, etc, determinando fortemente os interesses de cada um face à informação disponibilizada e orientndo a qualidade das suas escolhas de informação;
  • a reorganização da relação do sujeito e com o conhecimento. Por exemplo, multiplicação e difusão das fontes de informação vai colocando em questão o lugar tradicionalmente pouco questionado da escola e dos professores face ao conhecimento.

Para além de competências técnicas para lidar com as NTIC em termos de as inserir no processo curricular, espera-se que os professores desenvolvam perspectivas ideológicas que lhes permitam a análise crítica e reflexiva dos problemas e questões sociais que directa ou indirectamente alimentam aquelas tecnologias; ou seja, de um professor mediador, sistematizador, apoiante de escolhas, capaz de abertura democrática face a diversas perspectivas ideológicas. É uma exigência que vem da necessidade de ter de lidar com a diversidade. Diversidade (e quantidade) de informação, com muitas fontes e através de diversos meios; diversidade de alunos e suas famílias definidos por saberes, atitudes e crenças muito diversificados.

É esta capacidade de leitura crítica, atenta e permanente das mudanças na sociedade da informação e a sua projecção para o seu quotidiano profissional e, particularmente, para o currículo, sob a forma de uma pedagogia crítica, que se espera de um perfil de professor para a sociedade da informação em que vivemos. É, necessariamente, um perfil que exige uma concepção do conhecimento transformista, dinâmica e actualizada, baseada no modo, necessariamente crítico, como cada um lê, ouve e interpreta as interacções na sociedade em que vive e, em função disso, (re)constrói o currículo formal. As competências do docente para essa (re)construção resultam, assim, da conjugação daquelas atitudes perante as mudanças sociais, com competências relacionadas com os conhecimentos, atitudes e destrezas a desenvolver nos alunos. Esta flexibilização do processo educativo ocorre, necessariamente, num clima de autonomia docente e visa proporcionar mais e melhores oportunidades de aprendizagem a todos os alunos. A passagem para esta concepção de prática curricular envolve dimensões fortemente ideológicas. Depende da consciência de cada professor acerca daquela autonomia e que as suas perspectivas sociais incluam preocupações em relação a situações de injustiça social, que esteja convicto da importância do seu papel na escola para as atenuar e reconheça o seu poder para estruturar processos curriculares com aquela finalidade.

Em resumo, a diversificação das sociedades, a intercomunicação a nível global, a mundialização dos direitos humanos e a projecção destes fenómenos para a educação, exigem a afirmação do professor enquanto intelectual-reflexivo. É a condição essencial para flexibilizar o currículo enquanto estruturação de formas para o adequar à diversidade dos seus alunos. A capacidade para flexibilizar o currículo é a pedra de toque da definição prática da profissionalidade docente. É uma característica esperada de todos os professores. Tem exigências que a sustentam.. Exige que o professor seja conhecedor dos conteúdos curriculares e dos aspectos metodológicos do processo de ensino, das características e condições das pessoas na sociedade em que vive e dos seus alunos; está atento às questões e problemas sociais; tem consciência da sua autonomia profissional para integrar no currículo conteúdos e processos emergentes dos conhecimentos do mundo que o rodeia; decide e questiona as suas práticas em função de cada contexto (alunos, turma, escola e comunidade) e da necessidade de as orientar no sentido da realização de níveis crescentes de igualdade de oportunidades; tem capacidades de análise crítica dos processos sociais e escolares e avalia permanentemente os efeitos das suas escolhas e acções junto da diversidade dos alunos.

Carlos Cardoso
ESE de Lisboa
Carloscar@netcabo.pt

  
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Edição:

N.º 107
Ano 10, Novembro 2001

Autoria:

Carlos Cardoso
ESE de Lisboa
Carlos Cardoso
ESE de Lisboa

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