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O cotodiano da recepção televisiva: para além de generalizações

No ano de 2000, em que a TV brasileira completou meio século e em que debates inflamados envolvendo a produção televisiva e a participação dos jovens em certos programas ganham espaço nos media e em nossa conversa diária, a televisão tem suscitado polêmicas acirradas, constituindo-se muitas vezes alvo de posicionamentos extremistas e apaixonados. Não se trata de um debate novo ou mesmo de uma questão de interesse local. A TV constitui parte vital do cotidiano de milhões de pessoas espalhadas em cada canto do mundo. No entanto, o conhecimento que temos a seu respeito ainda é acanhado frente ao uso que dela fazemos, tornando-se assim campo fértil para estereótipos e simplificações.

Nas polêmicas que se travam em torno da televisão, tem predominado um modo de discussão que coloca a possibilidade de inicativa nas mãos do produtor, considerando o receptor como passivo e alienado, como mera vítima, como quase imbecilizado por não apresentar capacidade de resistência. Um bom número de pesquisas, no entanto, tem questionado esse posicionamento, convidando-nos a pensar a recepção como processo que não pode ser reduzido à reprodução, pois se apresenta permeado de mediações1 que acabam por estabelecer uma negociação de sentido, uma interactividade, um jogo entre o que foi produzido e a recepção. A inspiração teórica para esse enfoque se teceu em uma trama matizada por estudos oriundos de várias tradições de trabalho. Mais que resgatar essa trama, penso ser necessário assinalar contribuições significativas que esse enfoque tem permitido. Estudos de recepção assentados nesta perspectiva convidam-nos para que fiquemos atentos a pequenos/grandes detalhes que muitas vezes passam despercebidos por juízos superficiais, descomprometidos com a riqueza e a diversidade do cotidiano, espaço/tempo complexo, da maior importância na mediação que se estabelece entre os indivíduos e a cultura de massa2 . Espaço/tempo no qual podemos observar pressões e processos cognitivos que têm sido com frequência negligenciados pelo modelo de investigação hegemônico.

Rompendo com discursos reducionistas e generalistas, carregados de afirmativas que muitas vezes não se sustentam, convidam-nos ainda a um mergulho no cotidiano em que se tecem múltiplas redes carregadas de sentidos, saberes e sentimentos, nas quais homens e mulheres se recriam e se produzem culturalmente, de maneira incessante. Questões como essas vieram à cena em diversas situações da pesquisa que desenvolvi sob o título O que os jovens fabricam com o que a TV produz? Ainda que os seus achados não possam ser generalizados, esse trabalho, ao indicar como os jovens investigados se comportam frente à TV, faz-nos ficar atentos ao fato de que certas falas uniformizadoras em relação à influência da TV não dão conta de tudo daquilo que o cotidiano nos fez ouvir, sentir, ver, compreender e interrogar. Sem perder de vista que a TV, mesmo não sendo tão poderosa como certos posicionamentos pretendem nos fazer acreditar, não pode ser entendida como inócua ou neutra, esse trabalho chama nossa atenção para o jogo estabelecido entre emissão e recepção e contradiz discursos recorrentes que apontam a TV como possuidora de uma influência decisiva na vida das pessoas, tornando-as submissas à sua vontade. Lembra-nos que os jovens não aceitam tudo o que a televisão lhes apresenta. E mais, que as relações pessoais mostram-se muito importantes na fabricação que realizam com o que a TV produz. Em seu dia-a-dia concreto, real, vivido como outros sujeitos, os jovens discutem, dialogam, confrontam com outras pessoas e instituições o que a TV emite, tecendo redes nas quais se coloca em cheque o que é veiculado pela TV. E, nesse amplo processo, vão reinterpretando, ressignificando, acatando ou mesmo repudiando suas mensagens.

Geni Amélia Nader Vasconcelos
Universidade do Estado do Rio de Janeiro
Grupo de Pesquisa Redes de saberes em educação e comunicação
1 Os estudos a esse respeito foram realizados na América Latina pelos pesquisadores Jesús Martin-Barbero e Guillermo Orozco
2 A ideia de múltiplas cotidianidades, desenvolvida por Boaventura Sousa Santos ajuda-nos a ampliar a noção de cotidiano, apontando para a tensão local/global e para os diversos e variados espaços/tempos que medeiam a relação dos indivíduos com a cultura de massa

  
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Edição:

N.º 106
Ano 10, Outubro 2001

Autoria:

Geni Amélia Nader Vasconcelos
Univ. do Estado do Rio de Janeiro. Grupo de Pesquisa Redes de Saberes em Educação e Comunicação
Geni Amélia Nader Vasconcelos
Univ. do Estado do Rio de Janeiro. Grupo de Pesquisa Redes de Saberes em Educação e Comunicação

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