Um mês após o início do ano lectivo realizaram-se já centenas
e centenas de reuniões por todas as escolas, as famosas reuniões de planificação;
quem andasse a espreitar por todas essas reuniões facilmente ouviria coisas
do género: «eles aqui têm sempre muitas dificuldades», ou, «nunca percebem isto»,
ou, «eu aqui passo à frente, nem vale a pena», etc., etc. Poder-se-ia perguntar:
«o que é ensinar»? Mas hoje, o que aqui me interessa perguntar é: «o que é aprender»?
Poderia a música contribuir para elucidar tão problemática questão? Problemática
ao ponto de haver quem se questione mesmo ao nível da terminologia. Quer dizer:
há quem afirme que os próprios conceitos já se encontram desadaptados da «realidade».
Por isso a própria palavra «aprender» já não serviria para designar as tarefas
curriculares que os alunos devem realizar ao longo do ano na sua escola. Outros,
ao contrário, continuam a utilizá-la sem quaisquer hesitações. Eu conheço pessoas
que cantam em coros há décadas com música escrita na mão e mesmo assim, passadas
essas décadas, são incapazes de cantar a música que aprenderam dizendo os nomes
das notas musicais em vez do texto. As notas estão lá mas é como se não estivessem.
Então pode-se perguntar para que quer um elemento de um coro - que vai ensaiar
após um cansativo dia de trabalho - a música escrita se não a sabe ler? «Sempre
ajuda», dirá. Pois. E isto às vezes depois de pertencer ao coro há mais de vinte
anos! Suponho que já contei aqui na Página que uma certa ocasião, enquanto ensaiava
o Coro, Lopes-Graça reparou que um dos cantores ia escrevinhando na sua partitura
atarefadamente. Não se conteve que no final não pedisse ao dito elemento para
ver as notas que tão cuidadosamente ele tinha tomado durante o ensaio. Reparou
então numa partitura cheia de bolinhas com as mais diversas cores. Saiu então
uma explicação: as vermelhas são para os sons mais agudos, as castanhas para
os sons intermédios, as pretas ... enfim ... ! Foi a vez de Lopes-Graça atirar:
«ó homem, então por que é que você não aprende música?». Aconteceu também noutro
ensaio com o mesmo Lopes-Graça que um outro elemento, tendo-se perdido numa
peça nova, sentiu de repente um grande silêncio no coro. Levantando os olhos
viu o maestro de olhar irado e com os braços em suspenso perguntar o que estava
ele a fazer. O companheiro do lado, perante a perturbação, saiu em seu auxílio:
«ele passou uma página, maestro, mas já lá está». «Ah! Ele sabe música?», perguntou
Lopes-Graça.
Aprender música, saber música. Afinal o que é aprender? Seria realizar uma
tarefa específica, como fazem as crianças quando «aprendem» a juntar as letras?
Não sei. Só é músico quem consegue ler uma partitura musical? E aqueles grandes
nomes do jazz, a quem às vezes chamamos monstros do jazz, pianistas, saxofonistas,
trompetistas que eram incapazes de ler uma partitura musical? E, por exemplo,
em Portugal, aqueles cantores com carreira feita, que preenchem o nosso imaginário
de décadas e que com uma guitarra na mão atacam o palco e gravaram dezenas de
discos sem conhecerem uma nota do tamanho de um carro eléctrico? E aquelas cantoras
que hoje maravilham os mais novos (e outros) e nunca tiveram uma lição de canto?
Se lhe desse nomes, o meu caro leitor ficaria verdadeiramente surpreso ...
Bem, para início do ano já basta. Deixe-me só dizer que talvez aquele ali
«não saiba fazer» uma coisa que eu quero, mas em contrapartida «faz e sabe fazer
muito bem» algo que a mim não interessa. Mas talvez interesse ao próprio e a
outros. Como um certo monstro do jazz dizia: «eu quando estou a tocar estou
a falar, estou a dialogar com outros músicos, utilizo a linguagem do meu povo».
Talvez fosse daqueles que não «sabia» uma nota de música ...
Guilhermino Monteiro
Esc. Sec. do Castêlo da Maia
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