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Escola pública e manigância

Poucas imagens serão tão eloquentes para exprimir a crise que atravessa a Escola pública como as que nos foram apresentadas no termo do ano lectivo anterior, aquando das novas matrículas, por alguns anúncios publicados em jornais diários, onde prestigiados estabelecimentos de ensino público do centro da cidade do Porto se ofereciam despudoradamente à sorte ditada pelas regras da oferta e da procura...
Como aceitar, sem um estremecimento sequer, que instituições escolares que, ao longo de sucessivas gerações, representaram ora um marco irremovível no processo de ascensão pessoal e social, ora uma conquista irreversível indispensável ao exercício dos direitos básicos por parte das gerações ascendentes, ora uma arena de combate e afrontamento entre diferentes modelos de desenvolvimento e de cultura, mas sempre uma referência irrefragável para as mais elevadas aspirações sociais e culturais dos que por lá passaram, como aceitar sem um estremecimento, sequer (repete-se) que, num ciclo de tempo extremamente curto, tenham ficado expostas à contingência do "lá vem um"?
O fenómeno foi-se desenvolvendo segundo ritmos diferentes de ano para ano e segundo expressões quantitativas também diferentes de instituição para instituição até que atingiu níveis indisfarçáveis de inquietação global no termo do ano lectivo anterior. A princípio, timidamente e um pouco a contra-gosto, como quem está a usar um remédio desenganado, aventava-se com a explicação da desertificação da cidade. Esta explicação, adoptada em boa parte pela classe docente das respectivas instituições, era objecto de boa anuência provavelmente porque beneficiava a hipótese de que a quebra de frequência não obrigava a pôr, drasticamente, a questão da concorrência movida ao ensino público pelas escolas privadas.
A desertificação do centro da cidade, fenómeno fluido e de responsabilidade diluída foi ocultando, assim, os verdadeiros mecanismos do processo de esvaziamento progressivo das escolas públicas que radicam, por um lado, em medidas políticas explícitas, como sejam os contratos de associação que o Ministério da Educação celebrou com alguns colégios situados paredes meias com as escolas públicas e, por outro, em medidas políticas mais difusas e mais globais, onde se conta o sistema de avaliação pretensamente nacional que integra práticas e modalidade privadas de avaliação (as chamadas provas de avaliação interna). É aqui que radica, como toda a gente sabe, o princípio do desvio do aluno do ensino público para o privado. Trata-se, apenas, de oferecer mais garantidamente medidas de sucesso.
Não se pretende dizer que haja desonestidade nisso. Faz-se apenas agir o princípio mais geral que organiza a sociedade contemporânea: o de aproveitar as oportunidades de sucesso que, neste caso, é medido pela nota escolar. O contrato de associação celebrado entre o Ministério e os colégios integrar-se-á nesta lógica: estender a todos os que queiram aproveitá-la a oportunidade de sucesso. Daí que. longe de atentar contra a escola pública, os contratos de associação guiar-se-iam pela ambição de tornar os colégios tão públicos quanto as escolas públicas. Restaria às escolas públicas integrar-se nesta lógica, isto é, a de tratar os seus alunos como clientes.
Serão os anúncios nos jornais o primeiro passo nesse sentido?
Uma outra pergunta se impõe, porém: quem se ocupa dos que não têm sucesso? Ou já não há "disso"?

Manuel Matos
FPCE, Universidade do Porto

  
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Edição:

N.º 105
Ano 10, Agosto/Setembro 2001

Autoria:

Manuel Matos
FPCE, Univ. do Porto
Manuel Matos
FPCE, Univ. do Porto

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