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Quando Setembro era férias

A minha mãe era professora dos mais pequenos e morávamos ali ao lado da escola. Saiba-se que o plural não é masculino por haver eles e elas. Calças para um lado e saias para o outro, assim mandava a decência. E, se as escolas eram pegadas, despegavam-se os recreios. Nada de confusões, quer dizer, para os outros e as outras, porque para mim, felizmente e graças à asserção por que comecei este escrito, a conversa era diferente. Até deitava tão bem o pião, e jogava ao botão (contava-se a palmos) e ao berlinde; esta última modalidade, com bolas das garrafas de pirolitos que se partiam para desfazer a magia ou o engenho que as colocava lá dentro. Um gargalo mais estreito, que coisa fantástica!
Ora bem, Setembro era férias e era o mês eleito pelos meus pais para rumar com armas e bagagens até à praia, que o aluguer da casa era mais barato do que em Agosto e o sol não queimava tanto. Só os dias é que já eram mais pequenos, notava-se! O sol não só aquecia menos como também se escondia mais depressa.
Era ainda tempo de poupar nos furos das tendas de chocolates que eram uma tentação. E a emoção de esperar pela cor da bolinha. Ai as divagações são tão boas! Os sentimentos são indescritíveis por melhor que a veia esteja!
A que é chamada aqui a contenção de despesas da criança? Ao facto de a mãe de ela própria fazer anos a 10 de Outubro, isto é, logo, logo a seguir ao recomeço das aulas e... a caixa dos lápis fechava mal. Tinha que ficar uma migalha para a substituir, senão vinha ralhete "então o material é durável ou não é?".
A isto se resumiam as preocupações sérias dos Setembros da minha infância.
O resto, era fruir a lentidão do movimento dos ponteiros do relógio, descobrir caramujos, beijinhos e outras maravilhas que o mar trazia quando transbordava e desfazia os castelos de areia, castelos que tinham sucessores cada vez mais belos. A beleza do efémero que se valoriza por não haver tempo para ver bem e sobrar tempo para imaginar, recordar, fantasiar...

No início da carreira de professora de uns e umas mais crescidinhos(as), ainda Setembro sabia a sal. Depois, as férias foram ficando mais pequenas, mais curtinhas, os dias mais contados, os relógios a perderem os ponteiros e a avançarem com uma velocidade doida de digital. Os analógicos eram coisa antiga (é ver os mostradores à antiga a imporem-se avassaladoramente agora no século XXI), mas as analogias dão que pensar. É melhor assim? Era melhor com menos aulas?
É uma provocação, eu sei!
Os alunos transformavam-se em más pessoas enquanto não frequentavam a escola? Ficavam mandriões e os professores, com indicação (delegação) expressa da família, depois metiam-nos na ordem?
Os(as) professores(as), esses e essas, não eram profissionais de ensino? Não cuidavam o que ensinavam? Não havia até aqueles que davam as aulas na horta, no jardim, no coreto da terra, conforme o clima e as inspirações impunham?
Os armários que, por exemplo, na escola primária, ostentava o sistema métrico, as canecas de folha para as capacidades, as miniaturas de esteres para a lenha, não tinham prateleiras nem gavetas onde coubesse a enormidade numérica de papéis que agora se usam, usam no sentido de estarem em voga, porque quanto a eficácia haverá os que a têm e os que nunca a conheceram.

Não, não me acusem de ser saudosista, podem ser injustos. Prefiro que me reconheçam a capacidade da interpretação crítica da memória.
Vamos deixar-nos incendiar pelas cores de Setembro que já não é férias e façamos uma rentrée optimista!

Iracema Santos Clara
Escola E.B.2/3 Dr. Pires de Lima

  
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Edição:

N.º 105
Ano 10, Agosto/Setembro 2001

Autoria:

Iracema Santos Clara
Escola E.B. 2/3 Dr. Pires de Lima, Porto
Iracema Santos Clara
Escola E.B. 2/3 Dr. Pires de Lima, Porto

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