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Provas de Aferição - o direito à recusa

«Se não servem para passar para que é que as vamos fazer?»

aluno do 4º ano da Escola EB1 de Montemor-o-Novo nº 1

As provas de aferição, em Língua Portuguesa e Matemática, trouxeram algum sal-e-pimenta ao nosso ensosso sistema educativo. A divulgação dos resultados, do ano lectivo transacto, despoletaram o debate sobre a oportunidade (ou não) do "ranking" das escolas. Já nas suas fases de preparação e realização, o ME tinha dado um abanão na profissionalidade docente (transformando o professor em "aplicador") e na organização das escolas (reduzindo a sua autonomia a zero). A tutela decide e os professores nos estabelecimentos cumprem, de acordo com o estipulado nesse manual antológico que devia ser adoptado nos múltiplos cursos e acções de formação, que para aí pululam, em que se "compram" os conceitos de «professor reflexivo» e de «autonomia organizacional das escolas» em troca de uns créditos ou de uns complementos úteis (apenas e só) à progressão da carreira.

Retomando os argumentos que aqui aduzi, há três anos 1, contra este tipo de provas ? hierarquização curricular, desmotivação intrínseca dos alunos e sua utilização como cobaias do sistema ? irei desta vez focalizar-me no facto de elas não terem «qualquer interferência na avaliação sumativa ou na progressão escolar dos alunos», como o ME não se cansa de nos esclarecer. Não conta para a avaliação sumativa nem tão pouco para a avaliação formativa. Apesar de formatadas no modelo clássico dos exames nacionais, com rituais de encenação a condizer, tudo é afinal ao faz-de-conta. Para o aluno, tomado individualmente, elas não adiantam nem atrasam e aí é que está o busílis da questão. Ao contrário do que é regra e hábito nas escolas, onde "tudo o que se faz conta", estas "provas" (quem de facto está a ser posto à prova, é ainda um enigma) não têm efeito algum na vida académica das crianças e jovens do ensino básico. Uma vez concluídas, nunca mais os directamente envolvidos lhe põem a vista em cima, pois são levadas de imediato para uma qualquer repartição desse "laboratório" coordenado pelo GAVE, e ficam a «não saber o resultado das provas». Assim, este é mesmo o único trabalho que não dá qualquer indicação ao professor sobre a performance dos seus alunos, sobre as suas potencialidades e vulnerabilidades. E estes não recebem o habitual feedback, próprio de um processo regular, constante e sistemático de avaliação contínua. Ora isto é precisamente o contrário da cultura escolar em que os alunos foram socializados e daí manifestarem expectativas, lógicas e naturais, quando afirmam que «as provas são boas porque ajudam a ver se a gente sabe ou não», «para as professoras saberem o que nós sabemos melhor e pior» ou ainda «é para ver se somos bons para passar para o Ciclo» (tanta ingenuidade defraudada!) 2.

Curiosamente, a posição dos sindicatos, da Fenprof mais concretamente, não difere, na essência, da do ME: ambos consideram que «as provas aferidas são um instrumento útil na recolha de informação necessária à tomada de medidas correctoras». Só que aqui, as tradicionais posições sobre o estado da educação invertem-se: agora é o ME a achar que há problemas e os sindicatos, muito cautelosos e defensivos, a falarem «de eventuais disfuncionamentos do sistema educativo.» Continuam de acordo quando reconhecem que «a informação recolhida poderá ser útil aos professores e às escolas». Pois é, útil a todos menos aos alunos! Divergem quanto à metodologia: à universalidade e à regularidade da sua aplicação contrapõem que «as provas aferidas não devem ser realizadas anualmente por todos os alunos, mas por amostragem cientificamente elaborada e com intervalos de tempo suficientemente alargados.» Que ideia mais peregrina! Num sistema onde as práticas do igualitarismo estão tão arreigadas, uma medida destas seria mais uma acha para a fogueira e para a divisão. Aí vos deixo a resposta (sensata) de um aluno que a realizou este ano: «ou fazem todos ou não faz ninguém.»

Mas o que mais se estranha é a ausência de indignação por parte dos pais. Só um débil movimento associativo dos encarregados de educação pode explicar esta passividade que não questiona a forma como os seus filhos estão a ser usados, pelo ME, neste «processo complexo» de avaliação. Mobilizados para tarefas que passam ao lado da normal actividade discente, vêm-se convertidos em "sujeitos de investigação", a quem cabe fornecer «dados de trabalho e reflexão para o desenvolvimento do currículo e da melhoria dos processos de ensino e aprendizagem». E se é fácil arregimentar os alunos do 4º ano para a realização de tais provas, pela fragilidade dos seus 10 anos, o mesmo não é possível garantir com os alunos de 15 anos (9º ano) que irão ser chamados a participar no próximo ano (já este ano se registaram resistências nos do 6ª ano, em especial entre os denominados "alunos difíceis"). A cultura de escola se encarregará de rapidamente socializar esse sentimento do "não te rales, aquilo não serve para nada, não conta para a nota".

Também para o ano a minha filha mais nova será apanhada nesta teia. Defendo que as provas de aferição, enquanto não forem um elemento a ter em conta na avaliação dos alunos, não devem ter um carácter obrigatório e, por isso, ela tem o direito de se recusar a participar. Ou eu, como pai e encarragado de educação, resolvo não enviar a minha filha à escola nos dois dias das provas de aferição ou, quanto muito, pode vir a colaborar, no estatuto de voluntariado, mas para isso exijo, no mínimo, receber um papel em que me seja solicitada autorização para ela participar na realização de semelhantes provas (tal como me pedem quando tencionam levá-la a uma visita de estudo, por exemplo). De outro modo, essa actividade tem que ser considerada no estatuto de "prestação de serviços" e, nesse caso, deve ser paga por tal tarefa. Já ninguém trabalha para aquecer!

Luís Souta
Instituto Politécnico de Setúbal

Notas
(1) SOUTA, Luís (1998) "O Regresso dos Exames: mais um buraco no queijo gruyère", a Página, nº 68, Maio, pp. 4-5.
(2) Todas as transcrições, dos alunos, aqui reproduzidas, reportam-se a uma das turmas do 4º ano da Escola EB1 de Montemor-o-Novo nº 1, e foram recolhidas por iniciativa da respectiva professora antes e depois da realização das provas de aferição deste ano lectivo. O nosso público agradecimento por nos ter facultado esses depoimentos escritos.


  
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Edição:

N.º 104
Ano 10, Julho 2001

Autoria:

Luís Souta
Instituto Politécnico de Setúbal
Luís Souta
Instituto Politécnico de Setúbal

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