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A segunda via

Para Diana, nascida em Maio, filha da Elsa e do Luís.


1. Introdução.

Normalmente, a segunda via é mais um outro papel necessário para solicitar ou requisitar um valor ou um serviço. Uma segunda via é a passagem para mais um texto do que se tinha solicitado num primeiro. A segunda via é o caminho circular que contorna o caminho directo entre um agir e uma necessidade, entre um precisar e um obter. Entre um sentimento e um objectivo procurado. Segunda via é burocracia. É a síntese do que devia ter sido feito logo e nunca mais é conseguido. Parece que a segunda via é o agir dos adultos. E, no entanto, as crianças têm, queiram ou não, saibam o não, uma segunda via nos seus sentimentos. A criança reside no sítio social dos que estão em baixo, subordinados, submetidos à autoridade das pessoas do topo da gama, esses adultos que a lei positiva define como os seus tutores ou autoridade que ensina, ou curadores ou autoridade que gere os seus bens materiais e fazem negócios por eles e em nome de eles. Como manda o Código Civil que nos governa e o Direito Canónico que o substitui. Na Catequese ou nas aulas de Educação Cívica. A criança aprende que deve respeitar os adultos, especialmente dois de eles, o pai e a mãe. E, de entre esses dois, adorar a mãe e temer ao pai. Até o imaginário Ocidental desenha a Divindade com cara de homem. O pai é a lei, a mãe, a afectividade. A mãe transporta a criança dentro do seu corpo, a faz nascer e a amamenta, veste, agasalha, acaricia, fica com os mais novos em casa. Pelo menos, por um tempo. A mãe, é a primeira via de todo ser humano. E o pai?.

2. O pai, a segunda via.

Não é em vão que Freud em 1905 tivesse definido os sentimentos dos pequenos a partir da sua visão dos adultos. Na nota de rodapé que o autor acrescentou aos seus ensaios em 1915, diz "É essencial entender que as noções de masculino e feminino parecem ser não problemáticos na conversa do dia a dia. E, no entanto, têm três sentidos diferentes. O primeiro, define o ser como activo ou passivo na interacção social; o segundo sentido, é biológico; o terceiro, fisiológico... Dos três sentidos, o primeiro é o mais importante para o entendimento da psique do ser humano..." (minha tradução e síntese). Esta nota parece-me importante se aceitamos o que tenho vindo defender ao longo de vários anos: a criança imita ao seu adulto modelo, normalmente a figura da mãe e a do pai da casa, não interessa qual a fisiologia de essa pessoa: se com óvulo ou com esperma, se com vagina ou pénis. O que interessa é o comportamento e a emotividade que este desperta no ser humano mais novo. Acrescenta Freud nos ensaios citados, que masculino pode ser quem é activo em objectivos passivos e feminino em objectivos activos ou passivos. Mais interessantes são os seus comentários sobre a emotividade que descreve ao longo do texto. No seu Século e na sua experiência como médico da burguesia de Viena, para Freud todo o que for sentir vergonha, piedade, comiseração, restrição sexual, recato sexual, é feminino. En revanche, toda iniciativa para gerir, mandar, criar iniciativas sociais, mandar, seduzir, dar sermões sobre o comportamento público e, especialmente, como concorrer para ganhar e lucrar, seriam hábitos masculinos socialmente aceitáveis e esperados. O discurso de Freud, que foi modificando em notas de rodapé entre 1905, 1915 e 1925, parece ser hoje pouco actualizado. E, no entanto, penso que o não é. Do meu trabalho de campo, tenho observado que a feminidade exprime-se no cuidado dos mais novos, na gestão da casa e, especialmente, em invocar à autoridade do pai como legitima para corrigir o comportamento dos mais novos. Embora a mãe da casa seja a pessoa que governa no dia a dia, a sanção final do feito e dito fica entregue ao homem da casa ou grupo doméstico. O problema que Freud nunca teve que entender é o de que a masculinidade transita, hoje em dia, entre a genitália feminina e a masculina. Por outras palavras, a saída de casa para as fontes de trabalho por parte da mãe, organiza uma concorrência entre masculino e feminino. Porém, a criança tem duas referências: comportamentos masculinos da mãe e comportamentos femininos do pai. No que diz respeito aos sentimentos, bem entendido. Seja a mãe ou seja o pai a pessoa que alimenta o lar e configura a disciplina, é um facto certo que a criança aprende de um ou de outro os sentimentos que a futuro vai precisar no seu agir social. Ou no seu comportamento amoroso com outros seres humanos. Se é a mãe quem seduz e o pai fica atrapalhado consigo próprio, será este o modelo para rapaz e rapariga na sua vida adulta. É como analisa Melanie Klein quando fala da terapia do pequeno Fritz, o seu cliente e vizinho: "Onde estava eu antes de nascer?...e a mãe diz que os cachorros crescem no ventre das suas mães..." É ao longo da obra de Klein, como a de Alice Miller, que é possível apreciar que, com todo, a infância retira saber emotivo da pessoa que identifica como a mãe ou a figura da mãe. Raramente as questões são endereçadas ao pai. As minhas observações apontam para a ideia da cultura social, que reserva a mãe o papel de explicar o real emotivo aos mais pequenos. O pai é útil para conferir as dúvidas sobre o que a mãe tenha dito ou exprimido ou, ainda, manifestado perante a criança. É costume na nossa cultura ocidental, oferecer carinho material em beijos e caricias, cantar canções de embalar, mudar fraldas, amamentar ao peito. Tudo o qual o pai apenas pode observar, ou porque não lhe foi ensinado, ou porque não está dentro das formas de agir masculinas do seu grupo social. O pai é a segunda via que colabora ao entender da interacção social, caso esteja presente no lar, facto raro nos dias do Século XXI.

3. Haverá uma terceira via?.

Sei que o meu grande amigo Tony Giddens fala do caminho do meio ou da Terceira Via: Os comunistas, os conservadores e os social democratas ou terceira via na interacção político-social. Terceira via que triunfa na vida social. Uma terceira via, ao que parece, tem também sucesso na observação do jovem e da criança. Uma terceira via um tanto confusa como resultado da social democracia. A social democracia desenvolve o caminho para a mulher ser chefe do lar e tomar o rol masculino da sedução. Essa que a sua descendência observa. A mãe manda, a mãe trabalha, a mãe defina, a mãe fixa as horas e o homem cala. É mandado calar. É atingido pela sua dificuldade de saber acarinhar. A terceira via da mulher, reenvia o homem ao seu papel de segunda via: ver, ouvir e calar. A emotividade doce e belicosa é assunto das mães, essa emotividade que faz cócegas e toma nas suas mãos os afazeres do lar e o cuidado da criança. Especialmente em países marianos, como tenho definido Portugal em outros textos. Países onde não há Redentor, apenas a sua mãe, dentro do mito da Igreja Romana Pontificada por um Polaco que define, de palavra e por escrito, os deveres das mulheres, dos homens e das crianças em relação a eles, definidos nos artigos 4 a 5, páginas 471 a 478, ao dizer "o papel dos pais na educação é de tal importância, que é impossível substitui-los", ou antes " o Pai das misericórdias quis que a aceitação , por parte da que Ele predestinara para Mãe, precedesse a Encarnação, para que, assim como uma mulher contribui para a morte ainda, também outra mulher contribuísse para a vida" . Por outras palavras, a terceira via da família parece ser a via que a cultura social do grupo anda a espalhar pelos costumes. E as mães ficam em primeira fila e os pais, mais atrás. Porque se o Chefe dos chefes de Governo dos fieis romanos, espalhados pelo mundo Ocidental, manda a mulher a ser a salvadora dos homens, estes seres masculinos não têm mais palavra a dizer que não seja a da educação dentro de ideias predefinidas ao longo de séculos e analisados os seus resultados por tantos cientistas, que acaba por existir uma maneira de ser que coloca o masculino na segunda via e o feminino dentro da via moderna ou terceira via. Por outras palavras, e como o citado Freud diz, o agir masculino no homem ou não mulher é relegado, enquanto que o feminino, também no homem ou na mulher, é salientado até o ponto de fazer de esse agir o comportamento de uma rainha que acaba por mandar em todos nós, desde que saiba ser feminina, isto é, amar, acarinhar, mandar, dizer. Saber ouvir e saber dizer. Ideologia cultural contra a qual protesto da forma mais violenta ao me deixar na segunda via, essa que, como falei ao começo, nunca foi completada, nunca foi acabada. De homem, tenho o comportamento mas nenhum poder sobre a minha descendência. Posso punir...se a mãe solicita; posso dar um sermão, se a mãe o pede.

Sorte a minha de entender, pelo meu trabalho de campo e a observação da juventude do Século XXI, de que as palavras da doutrina, embora aceite e até assinada em Concordata por cima da lei, servem para ouvidos moucos por causa do amor que existe entre os cônjuges que fizeram a sua descendência ao calor da paixão que, docemente, passa a amor e a seguir, a carinho. Que diga Freud, que diga Klein, que diga Wojtila! Eu digo que todos somos homens e mulheres no amor dos nossos filhos e no de eles por nós. Ficam todas as férias para pensar no assunto. Felizes férias para pais e filhos de ouvidos moucos, e para os outros também!

Raúl Iturra
ISCTE/CEAS

  
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Edição:

N.º 104
Ano 10, Julho 2001

Autoria:

Raúl Iturra
Instituto Superior das Ciências do Trabalho e da Empresa, Lisboa
Raúl Iturra
Instituto Superior das Ciências do Trabalho e da Empresa, Lisboa

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