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Da página em branco... ao acontecimento.

Tratava-se dum trabalho de formação onde os docentes eram convidados a registar por escrito episódios das suas vidas profissionais, que deveriam ser remetidos anonimamente ao formador, pelo menos numa primeira fase, para serem assumidos como objecto de reflexão num momento posterior.

O pressuposto formativo era o de que as práticas podem ser qualificantes desde que possam ser reflectidas numa perspectiva de compreensão do processo de construção identitária. Esse processo é favorecido pela escrita que permite o exercício de distanciação e de transformação da experiência passada num sentido de futuro. Essa transformação do passado não é, obviamente, manipulação dos factos, mas mais um desejo de transformação de si, processo que preside à própria selecção dos factos de que se ocupa a escrita que participa neste processo de transformação. A escrita, de resto, não é alheia à própria natureza dos factos, ela é constitutiva da sua verdade; de certa maneira, ela é o "acontecimento" que dá sentido aos factos, porque resgata os factos da sua ordem rasteira e quotidiana, "onde nada acontece" sem ela. In(e)screver o passado no futuro é dar sentido à existência, sobretudo, quando "nada acontece"...como parece ser o quotidiano da escola...

O texto que se apresenta é exemplar a este respeito. Pela força identitária que confere à banalidade. Pela forma como transforma a banalidade numa bandeira de identidade, pelo projecto de solidariedade que anuncia: miudezas que devem ser postas em evidência, sobretudo quando os grandes meios de comunicação social parecem ter apenas olhos para o "ranking" das escolas...

Não posso deixar de prestar a minha homenagem à autora, que um dia talvez possamos conhecer.

Eis o texto:

"Outra página em branco...E a angústia de não ter nada para contar!. É (...) a sensação estagnada de que já nada acontece?

Ou a incapacidade de fazer com que algo aconteça?

No entanto, ouço-vos (aos colegas, na sala dos professores) todos os dias quando chego à escola:

..."os teus miúdos continuam insuportáveis...Não consigo dar aulas...Não estou para os aturar. Agora adoptei medidas acautelares".

- ..."Tens que fazer alguma coisa... O António chega atrasado", O Manel come na aula...O Joaquim assobia...O João esteve a ouvir música. Marquei falta.... Mandei para a rua.

- O que é que vais fazer?

- Tens que actuar ..."

E continua a não acontecer nada. Entro na sala.

- "Gostaria de não ouvir mais queixas, percebem?"

Zango-me. Berro, perco a cabeça:, tropeço e fico magoada...

E sinto então tantas mãos estendidas para mim. Têm todos 12 e 13 anos.

Finalmente, aconteceu qualquer coisa..."

Manuel Matos
Universidade do Porto

  
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Edição:

N.º 104
Ano 10, Julho 2001

Autoria:

Manuel Matos
FPCE, Univ. do Porto
Manuel Matos
FPCE, Univ. do Porto

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