Este é um texto que resulta da reunião de notas de campo com
algumas entrevistas que (por acaso?) encontrámos perdidas. Ninguém
ainda as reclamou Não sabemos se vieram parar a boas mãos,
mas depomo-las nas vossas.
Na primeira pessoa
Da minha mãe, já nem as feições
eu recordo. Cedo lhe perdi o rasto. E, só agora percebi o que todos vinham
tentando dizer-me: que eu nem sequer deveria ter nascido. Pensei que, na escola,
ainda poderia vir a ser gente, que teria direitos, poderia ser criança.
Enganei-me, porque foi como em casa, sem afecto, sem cuidados. Mas a escola
também não tem culpa. O que poderia fazer, se eu não tinha
cabeça para aquilo?
Pensando bem, a escola até foi a mãe que eu não
tive. Não me acariciava, mas também não me batia. Não
me olhava, mas também nada me pedia. Não me negava o tecto, ainda
que nem um banco me desse onde pudesse sentar-me, ou poisar as minhas coisas.
Mas que coisas? Tinha-me esquecido de que a professora, talvez para me poupar
à vergonha de pouco ou nada aprender, nunca me deu um livro ou um caderno.
Segunda pessoa
- Falaram-nos de ti.
- Quem, meu?
- Uns colegas.
- Colegas? Colegas daonde? Diz lá o que é que queres,
pá!
- Só queremos que nos leves à tua escola.
- Conheces a minha escola?
- Não, não conhecemos. Por isso é que queremos
que tu nos leves lá.
- P?ra quê, meu?
- Para falarmos com as tuas professoras.
- P?ra quê, meu? Já num ando lá. Dei de frosques
nas gajas, meu. Só lá ia p?ra dormir, ao fundo da sala. Só
lá andava a incomodar. Quando a senhora dos deficientes lá ia,
ainda vá... Mas, depois... A professora da primeira, um dia até
falou comigo e disse-me que tinha muitos para ensinar as letras e que não
podia perder tempo com atrasados como eu. Depois, amandou-me embora, para
eu não pegar piolhos aos meus colegas.
- Mas levas-nos lá, ou não levas?
- ?Tá bem. Eu levo. Mas tens aí cem paus para eu comprar
um bolo? ?Inda não emborquei nada hoje, meu.
Terceira pessoa
Deixou-nos à porta de uma escola igual a tantas outras.
Contornámos um recreio onde algumas crianças se empurravam e gritavam.
Fomos ao encontro de um grupo de professoras, para saber como viram o Paulo
os olhos das que o conheceram.
- Paulo? Paulo quê? Temos muitos...
Explicado de quem se tratava ? um antigo aluno, saído
há dois ou três anos ? uma a uma, disseram:
- Não, nunca ouvi falar!... Têm a certeza de que esse
Paulo andou aqui?
Tiveram a amabilidade de chamar a senhora directora:
- Espere lá! Estou recordada de um Paulo... Só um momento...
Vimo-la vasculhar os armários e retirar de um deles
um "livro de matrículas".
- Já não é bem do meu tempo. Só me lembro
vagamente de um aluno franzino, calado, sem história. O que tenho aqui
no livro é apenas a sua primeira matrícula. Passados seis anos,
só cá tem escrita uma passagem da segunda para a primeira classe.
Mais nada.
Pedimos que nos deixasse consultar os livros de registo de
frequência, as listas de constituição das turmas. Com alguma
relutância, acedeu. Se era para um estudo...
Dos oito anos que o Paulo havia frequentado a escola, o seu
nome somente constava de duas turmas, ambas do "primeiro ano" e separadas
por um hiato de sete anos. Nunca tivera lugar certo onde se sentar, caderno
que não perdesse em poucos dias. O Paulo foi o exemplo típico
de "aluno fantasma". Para todos os efeitos, o Paulo nunca existiu.
- Não admira que não aprendesse. Era um caso perdido,
um cábula que passava o tempo todo a dormir ao fundo da sala. Tal
e qual os irmãos dele!
No plural
Decorridos alguns anos, voltámos ao bairro, à
mesma escola, em tempo de recreio. A senhora directora era outra. Das professoras
que encontrámos na anterior visita, apenas uma restava. Confidenciou-nos
que até tinha tentado a lei dos cônjuges e a dispensa de componente
lectiva por desgaste nervoso. E nada...
À saída, chegámos à fala com um
puto espigadote, de entre os que não tinham voltado para dentro
quando o recreio acabara. Perguntámos pelo Paulo.
- A bófia acaçou-o! Apanhou dez anos de prisa. Mas, se
você quiser, arranjo-lhe dois ou três "panfletos". É
só cinco minutos..."
Sofia Veiga
José Pacheco
Escola da Ponte/Vila do Conde
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