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Crónica escolar de uma saudade inesperada

- Já são sete da tarde ?

António levantou-se, dirigiu-se ao balcão e pagou. Atravessou a rua e entrou no edifício da empresa. Tinha um longo serão pela frente.

- É nestas alturas que tenho saudades da minha vidinha de professor - desabafou.

- Dos cento e tal contos ao fim do mês ou da má criação da canalha ? ? a voz de Cecília não escondia nem a impaciência nem o sarcasmo.

Calou-se. Da última vez que tentara demonstrar como o presente era árduo e difícil, comparativamente aos três anos em que leccionara Matemática, tinham-se chateado um com o outro. Fora ela que lhe propusera o lugar na empresa como consultor na área de Informática. Conheciam-se desde a Faculdade. Tinham frequentado a licenciatura em Ciências dos Computadores e tornaram-se amigos. Ela, mal acabara o curso, conseguira o lugar por intermédio de uma cunha do pai. Ele, sem qualquer tipo de ofertas de emprego, candidatara-se como muitos outros a um lugar como professor de Matemática num mini - concurso qualquer. Aguentara-se assim três anos como um saltimbanco e um futuro profissional nebuloso, até ao dia em que Cecília lhe telefonou a convidá-lo para trabalharem juntos no Departamento de Logística de um conhecido grupo financeiro. Nem olhou para trás. Acabou o ano lectivo e zarpou.

Ganhava mais, incomparavelmente mais. Fazia o que gostava de fazer, mas por vezes não deixava de perguntar o que o distinguia de um escravo. Foi por causa de um destes momentos que a discussão tinha começado e uma outra se iniciaria, caso ele tivesse prosseguido com a conversa.

O que é certo é que, por vezes, sentia mesmo saudades. Inesperadas, fugazes e incompreensíveis. Não eram as saudades das férias do Natal, da Páscoa ou de Agosto. Não eram, tão pouco, saudades das vinte e duas horas de trabalho semanal que tinha que cumprir na escola. Eram saudades dos alunos. Não o ousava confessar em voz alta. Embaraçava-o pensar o que os outros lhe diriam se ele o afirmasse publicamente. E de facto como se explicava que alguém que andara a desperdiçar a sua juventude como professor contratado, em escolas do interior ou dos subúrbios, pudesse ter saudades de um emprego precário e mal remunerado ?

Nunca o compreenderiam se ele dissesse que eram os putos a causa dessa espécie de mal-estar esquisito e passageiro. Ele próprio sentia-se perplexo face a esse tipo de sentimentos. O que é que justificava aquele torpor subtil e breve ?

Não se distinguira como um professor de Matemática diferente do habitual. Reprovava tantos alunos como os outros professores faziam. Sentia as mesmas dificuldades. Não se distinguia sequer pelo seu discurso pedagógico inovador. Reconhecia, apenas, que embora se impacientasse com as suas dificuldades e se desgastasse no jogo do gato e do rato em que se ia embrenhando quotidianamente com eles, gostava da sua frescura, da sua jovialidade, daquele seu jeito tão peculiar de olhar o mundo e os outros de frente. Não tinha sido por acaso que sempre se envolvera na realização de alguns projectos da área ? Escola e ajudara os alunos, quando leccionara com turmas do 12º ano, a organizar a viagem de finalistas. Acompanhara-os e, apesar de nalguns momentos ter comido as passas do Algarve, não deu por mal empregue o tempo passado com eles, nessa semana, numa unidade hoteleira do sul de Espanha. Na maior intimidade daquelas férias forçadas pôde conhecê-los de um outro modo. E na generalidade gostou do que viu. Quando esse ano lectivo acabou, tinha descoberto que um professor pode ter muito mais importância do que aquela que os outros lhe reconhecem e ele próprio se atribui.

Quando mudou de vida, tudo se transformou. Acabaram as histórias sobre os alunos e os discursos sobre a juventude. Economicamente passou a usufruir de um desafogo financeiro que lhe permitiu começar a sonhar. Humanamente sentiu que ao deixar a escola, tinha deixado aí uma parte de si que sentia nunca mais poder vir a recuperar.

Nunca mais se esqueceria quando uma das suas alunas de um 9º ano, a Matilde, lhe pediu que lesse um trabalho para entregar à professora de Inglês. Tentou escapar à incumbência, alegando que não era a pessoa mais adequada para a ajudar. Mas como momentos antes, distraído, tinha admitido que se desenrascava bem com a língua inglesa, acabou por não conseguir resistir à solicitação algo veemente da miúda. Combinaram encontrar-se, então, depois do almoço. Por isso, prometeu-lhe que leria o trabalho durante o furo no horário que tinha todas as quarta-feiras pela manhã.

Segundo a rapariga lhe dissera, a professora tinha-lhes proposto que escrevessem um texto sobre a importância dos outros na nossa vida. E ela repondera ao pedido com uma redacção intitulada: People are strange. Lera-o rapidamente. Relera-o e ficara impressionado. Sabia que a miúda não era uma aluna por aí além. Andava no fio da navalha, mas era relativamente bem comportada. Não se lembrava da sua nota a Inglês, mas aquele texto despertou-lhe a curiosidade. Iria indagar.

People are strange when you are stranger, because you are not like them, and they don?t speak to you in a language that you can ear. When you are stranger, no one remember your name. You are alone, faces look ugly and music is your only friend. So when the music is over, I question my existence and purpose in life. Lera este parágrafo vezes sem conta. Não sabia se pasmado com a qualidade da escrita, se com a amargura que se pressentia naquelas palavras. When you are stranger, you are lost girl, unhappy girl. It seem?s you are locked in a prison, crying. Porque carga de água aceitara ler aquele trabalho ? Estava confuso. Já não sabia que tipo de ajuda é que a aluna pretendia. Queria que ele lhe corrigisse o inglês ou estava a mandar-lhe uma mensagem através daquele texto ? Run, run, run. Let?s run. Wake up. Find your friends, they are in your head and take advantage while they hang you out to dry. E o texto prosseguia sobre a importância dos amigos e a dificuldade em fazer-se entender pelos que não nos conhecem. O que é que lhe iria dizer ? Afinal não lhe disse nada. Perguntou-lhe quais eram as suas notas a Inglês e foi assim que soube que se encontrava perante uma aluna que andava entre os onze e os treze. Este trabalho vale mais do que isso, confessou-lhe. Como o sorriso de Matilde o desencorajou a fazer mais perguntas, deu-lhe os parabéns de um modo desajeitado e despediu-se. Do mesmo modo que não lhe dissera que tinha fotocopiado o trabalho para mostrar à namorada, também não fora capaz de a inquirir sobre o que é que ela afinal pretendia quando lhe fora pedir auxílio. Só na sexta feira à noite é que compreendeu a razão. Joana, sorriso traquina no rosto, depois de lhe perguntar quem tinha escrito aquilo, pregou-lhe com uma espécie de grunhido elegante quando soube que tinha sido uma das suas alunas. Sabes o que é que está aqui ? Diz-mo tu. Uma colagem de frases retiradas, pelo menos, de letras de canções dos Doors, dos Nirvana e, talvez, dos Limp Bizkit, dos Red Hot Chili Pepers e sabe Deus de quem mais. A miúda levou-te, António. E de que maneira. A rapariga usara-o muito provavelmente como cobaia. Para testar a marosca. Se a coisa pegasse com aquele professor, era capaz de pegar também com a professora de Inglês. Acabaram por rir a bandeiras despregadas com o episódio. Sobretudo quando ele lhe confessara como tinha ficado aflito com a possibilidade da rapariga pretender apenas desabafar. Ainda bem que não tinha sido essa a razão pela qual ela lhe dera o texto para ler, porque ele não saberia como agir. E agora, vais falar com a miúda, com a tua colega ou com as duas ? Acabou por não falar com ninguém. Apesar de tudo, o trabalho tinha mérito. Comprovava que ela sabia alguma coisa de inglês, tinha conseguido respeitar o tema e realizara um esforço bastante apreciável para que as frases retiradas daqui e dali se transformassem num ensaio coerente e interessante. Não, não a iria denunciar. Conhecia escritos inéditos que não possuíam metade da originalidade daquele nem tinham exigido sequer um décimo do esforço a que este obrigara a sua autora. Como, por fim, também ninguém viera falar com ele, achou que o caso se tinha encerrado por si. Nunca chegou a saber qual a classificação que Matilde obtivera pelo trabalho. Só no fim do período é que ouviu ser-lhe atribuído um doze a Inglês.

- António, chega aqui por favor. Acho que temos um problema para resolver. Era a voz de Cecília, na sala ao lado. Levantou-se devagar, sabendo que amanhã, quando acordasse, nada o faria recordar a noite de trabalho que tinha pela frente.

Ariana Cosme
Rui Trindade
Universidade do Porto

  
Ficha do Artigo
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Edição:

N.º 104
Ano 10, Julho 2001

Autoria:

Ariana Cosme
Fac. de Psicologia e Ciências da Educação, Univ. de Porto
Rui Trindade
Faculde de Psicologia e Ciências da Educação da Universidade do Porto
Ariana Cosme
Fac. de Psicologia e Ciências da Educação, Univ. de Porto
Rui Trindade
Faculde de Psicologia e Ciências da Educação da Universidade do Porto

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