Quarto de hotel, Joanesburgo, aos 4 de Maio de 2001,
"Odeio as viagens e os exploradores. E aqui estou eu disposto a relatar as
minhas expedições!". É assim que Claude Levi-Strauss,
talvez o mais influente antropólogo francês do século XX,
começa a sua belíssima narrativa sobre as viagens e o trabalho de
campo no Brasil por ele vividos no início da sua carreira académica.
Também eu decidi contar as minhas observações
e experiências em Moçambique. Escrevo as primeiras palavras deste
texto no voo do Porto para Londres. Quando olho para trás, embora não
me reveja nas suas palavras, compreendo o desabafo do autor de Tristes Trópicos:
quantas canseiras na preparação de uma viagem, melhor dito, de
uma mudança de vida. É disso que se trata, quando deixo Braga,
Chaves e o país para trás, trocados por um projecto de vida em
Moçambique durante os próximos oito meses. Para tornar mais incerta
a mudança e, quiçá, mais penosa, temos as vacinas, os antipalúdicos,
a farmácia com os mais variados medicamentos, as advertências médicas
sobre os cuidados a observar, por exemplo, na ingestão de água
e de alimentos frescos. Ao mesmo tempo que pesavam fortementemente na minha
cabeça, constituíam sinais fortes do que significa ser (e viver
n)um país da periferia do sistema mundial.
O que me leva, então, a Moçambique? A obtenção
de mais um grau académico seria a resposta mais directa, simples e muito
institucional. Mas espero algo mais, mais pessoal e, sobretudo, mais humano:
a compreensão de um punhado de homens e mulheres, provavelmente parte
camponeses, parte operários, com quem pretendo partilhar a sua vida quotidiana
nos próximos meses.
Esboçado nos ares europeus, este texto tomou corpo enquanto
atravessava África de lés-a-lés, confortavelmente instalado
no assento do 747 da British Airways, escutando a música de um dos canais
de bordo e, de quando em quando, dando uma olhada no monitor de cristais líquidos
para conferir a posição on-line do avião. Quando
penso no que está lá em baixo, a uma distância de 10.000
metros, o contraste não podia ser mais violento: é o centro e
a periferia que se sobrepõem, a relativa abundância e bem-estar
com a privação mais pungente. Tal como acontece numa exposição
fotográfica múltipla, o mundo que nos habituamos a designar como
globalizado está mesclado, numa profusão indefinida de formas
e traços que variam conforme o olhar e o contexto. Inevitavelmente, a
questão toma conta de mim: porquê África? Depois de longos
séculos de colonialismo, as lutas de libertação empreendidas,
ao longo de várias gerações, por homens e mulheres africanos
corajosos, parecem hoje vazias de sentido. As mesmas dependências, as
mesmas injustiças, as mesmas formas brutais de exploração,
alimentadas no passado pelo colonialismo, parecem não ter fim. Até
na África do Sul de Mandela, a esperança vai dando lugar ao desespero:
a partilha da riqueza, cada vez mais desigual, é um problema por resolver;
a SIDA prepara-se para ceifar, perante o despudor aviltante das multinacionais
farmacêuticas, o melhor da força de trabalho do continente; o desemprego
e a miséria parecem alastrar como fogo na savana quente e seca.
Ainda a tempo, é tempo de lembrar Paulo Freire e António
Gramsci. Constituem, para mim, duas referências incontornáveis:
intelectuais corajosos, os seus compromissos irredutíveis com as lutas
emancipatórias custaram-lhes, a Freire, longos anos de exílio,
e, a Gramsci, a vida, perdida nos cárceres do fascismo italiano. Nos
seus textos encontro, sempre, ideias e exemplos estimulantes. Como terão
reparado, colhi neles a sugestão de parte do título para este
espaço que agora se inicia.
Fernando Bessa Ribeiro,
UTAD (Chaves)
fbessa@utad.pt
|