Para José e Gil Smith Gomes Ferreira
1. Introdução
A vida da criança parece ser uma grande paz. É o ser que depende
de outros, é acarinhado, é cuidado, é considerado como
o senhor da casa. Ou não. O mundo não é a preto e branco.
A vida social tem por característica ser heterogénea. Um conceito
com o qual tenho já tanto batido, que remeto para os meus textos. Apenas
lembrar que é heterogénea por existir o carinho ao pé da
mágoa, o beijo ao pé do berro, o exemplo ao pé do desatino.
Tudo isto, entre adulto e criança. Ou entre crianças. A criança
é denominada o centro do lar por estar a ser ensinada a comportar-se.
A comportar-se entre os outros com respeito e subordinação; ou
com decisão amável para saber dizer não. À criança
é-lhe ensinado os limites do seu afazer e da sua interacção.
Ai dos pais ou adultos que o não saibam fazer! A crítica social
cai forte sobre eles e, ainda por esse temor do que vão dizer se...,
o grupo da criança é comedido com a mesma. E, no entanto, a criança
vive em kaos. Kaos, esse conceito da mitologia grega que diz que
do espaço inacabado e profundo, surgiu o Olimpo desde o qual foi
espalhada Gaeia ou a maternidade de todos os negócios do mundo.
Uma maternidade endereçada a manter a calma e a serenidade entre as pessoas.
Como Hesiodo e Homero descrevem nos seus texto do Século VIII antes da
nossa era. A criança vive no caos descrito pela tradição
grega, transferida como foi ao nosso imaginário. Imaginário já
povoado de realismo político por Aristóteles nos seus vários
tratados, especialmente o da Öikonomia ou as actividades reprodutivas dentro
de um lar. Toda criança vive necessariamente dentro de um Kaos
por não entender as opções dos seus adultos na vida da
cidade ou Polis, como Aristóteles designa no Século IV
antes da nossa era. Mas, é melhor deixar falar a Max Müller(1863),
James Frazer(1890), Émile Durkheim(1912), Bronislaw Malinowski(1948),
Claude Levi-Strauss(1949) e os seus discípulos e irmos directamente ao
assunto básico: o kaos da criança é a aparente descontinuidade
entre o mundo da crendice e o mundo da maximização ou optimização
de recursos. Aparente, porque o mundo da crendice está organizado pela
mente humana para organizar o recurso mais básico, o da força
de trabalho e o perigo iminente que essa força de trabalho representa:
sindicato ou solidariedade; maior salário e preços baixos para
consumir. É o teorema que Adam Smith, em 1775 denominava o mito de falta
da falta de abundância de recursos. Mito criado para dinamizar a produção,
necessário para a economia.
2. A crendice
Também denominada fé ou acreditar ou teísmo. Ideias dentro
das quais as crianças são educadas, denominadas essa ideias Doutrina
Religiosa. Atenção, Religiosa, não Doutrina Eclesiástica.
Religião e Igreja são dois conceitos diferentes, separados pela
cronologia da História e pelo pensamento das Culturas que toda a Sociedade
vive. Há a Religião Cristã, base das Igrejas Católica,
Presbiteriana, Adventista, Anglicana, outras. Todas elas ensinam à criança
a existência de um mundo divino ao pé do mundo natural. Todas elas
preconizam a solidariedade a partir do indivíduo. O indivíduo
é o centro da atenção da teoria religiosa que, pela sua
vez, é parte da Cultura ou conjunto de ideias que governam um grupo social
e que muda a través dos tempos para se ajustar as necessidades de interacção
política contingente do dia a dia. Ajustamentos feitos em seguimento
do que a natureza humana vai conquistando no campo social. No Século
I da nossa era, a Teoria Religiosa imposta ao mundo Ocidental o meu necessário
limite para falar da hipótese do título -, era a do Conquistador
Romano, cuja ideia era grega: o mundo estava governado pelas divindades existentes,
as quais manipulavam aos seres humanos conforme a ordem natural da matéria.
A Divindade não conseguia sair do kaos que impunha: a vida a partir
de dois, a morte de todos, a hierarquia a partir do mais forte, porém,
de quem era capaz de acumular maiores e melhores recursos, a superioridade livre
do proprietário desses recursos, a submissão à escravidão
da persona que, por carecer de bens, passava a coisa e circulava
dentro do mercado. Ideias recolhidas no Século IV pelo Código
de Justiniano que organizou o Direito Romano que, até ao dia de hoje,
governa a nossa vida social, quer como Código Civil, quer como Código
de Direito Canónico. Direito derivado das ideias que foram incorporadas
ao Império Romano em 312 pelas leis de Constantino I, defensor das ideais
cristãs que começavam a ser espalhadas pelo Ocidente nas cartas
de Paulo de Tarso e nos textos denominados Evangelhos. O Código de Justiniano,
inclui a ideia básica do grupo triunfador, os cristãos. Ideia
que consiste, simplesmente, em ser proprietário de bens e de saber governar
esses bens. Quem os não tinha ou não sabia, passava a ser diminuído,
conforme o Código citado, capite diminutio ou considerado incapaz
de pensar por si próprio. A base das ideias cristãs é a
liberdade individual para optar e acumular bens, tal e qual é possível
ver no dia de hoje, na Doutrina Oficial dos Católicos ou Summa Teologica
de Tomás de Aquino de 1273 e revigorada nos Catecismos que a Igreja Romana
tem, incessantemente, promulgado: o actual, de 1992, tal e qual os anteriores,
define o bem comum como o pilar da interacção. Isto é,
repartir os recursos a todos para todos serem ricos: ou colaborar com esmolas
ou fundações denominadas de caridade, para os que, por causa da
sua incapacidade para serem indivíduos e escolherem o melhor para viver,
precisam de apoio. Apoio que passa a ser a gloria da munificência de quem
dá. Aliás, esse Direito Romano, em conjunto com o Visigótico
do Século VI da nossa era, passam a ser um todo para governar a interacção.
Tal e qual o diz Calvino nos seus textos do Século XVI, e Lutero nos
seus próprios do mesmo Século: a bondade e vida eterna desejada
pelos seres humanos, é manifestada na sua riqueza e laboriosidade neste
mundo. A Doutrina Católica do Século XX continua as ideias tomistas
ou Ecuménicas do Século XIII, que falam do Livre Arbítrio,
da Livre Vontade para optar entre alternativas a colaborar na criação
da riqueza dentro do Livre Mercado, tal e qual falava já, no Século
IV Agostinho de Hipona e no Século I, Paulo de Tarso. Livre Mercado baseado
nas ideias bíblicas dos Dez Mandamentos que dividem as actividades entre
reverenciar à divindade que comanda o cuidado das pessoas, para o qual
é necessário possuir riqueza de forma exclusiva, riqueza que não
pode ser cobiçada nem retirada por outras pessoas que não sejam
os proprietários ou os seus parentes e herdeiros. Por outras palavras,
um conjunto de ideias a dinamizar a actividade económica para viver e
bem, e um conjunto de ideias que preconizam a individualidade. Não há
Mandamento que não esteja dedicado a esta ideia central. Ideia de individualidade
que regulamente a interacção dentro do seio da família
para a criança aprender desde muito nova, a sua colaboração
com os impossibilitados para trabalhar ou os adultos que, como sabemos, perdem
forças para produzir enquanto o tempo cronológico avança
e vai diminuindo as forças do corpo. Toda a Teoria Religiosa de toda
a Igreja, estrutura a força de trabalho e a espalha entre gerações
com deveres diversos. E, para controlar melhor as proibições e
dinamizar mais as virtudes, no Século XII da nossa Era, é criada
a Confissão, com uma lista de actividades acrescentadas conjunturalmente
ao longo do tempo, que tenta manter limpa a capacidade de se ser indivíduo
que sabe trabalhar.
3. Economia
Está praticamente condensada na frase inicial do livro do fundador da
teoria económica que nos governa hoje, essa de Adam Smith, por mim tantas
vezes citada: Todo o ser humano quer ser agradável aos outros. Para ser
simpático, deve ser laborioso. E, para tal, deve trabalhar. Todo ser
humano tem a inclinação de trabalhar e a organizar a produção
da qual vai viver, bem como a capacidade de fixar os preços da sua obra
e a opção para investir a moeda ganha, ou em mais moeda para o
lucro, ou em consumo dos bens que, por trabalhar no seu, não consegue
produzir e dos quais, no entanto, precisa. É evidente que Adam Smith
vai falando destas ideias ao longo de dois extensos textos de 1750 e 1775-,
mas, sintetizados por mim na frase entre aspas. A economia é, porém,
uma permanente opção da actividade e do tempo empregado na mesma.
O lazer não está contemplado na produção. A insistência
da teoria económica é fundar empresas, essa actividade de investimento
do tempo livre em tempo de produção. Adam Smith retira as suas
ideias da sua formação como futuro cónego da Igreja Presbiteriana
de Escócia, à qual pertenciam ele e a sua família e amigos.
E como discípulo da David Hume que moraliza nos seus textos de como os
seres humanos devem pensar para trabalhar, especialmente no seu livro de 1755,
A história natural da Religião, onde o seu cepticismo é
definido como a impossibilidade de conhecer a realidade se não é
pelas impressões de causa e efeito, na qual a divindade está presente.
Smith retoma esta ideia no seu livro de 1750 sobre A teoria dos sentimentos
morais, que utiliza, sem definir, na sua obra fundamental, denominada vulgarmente
A riqueza das nações, sintetizada mais acima e referida
no meu texto do mês passado neste jornal. De facto, a economia está
baseada, quer para as várias Igrejas Ocidentais, quer para cada pessoa
que deseja enriquecer, na autonomia dos sentimentos morais limitada pela interacção
com os que fabricam bens que nós não fabricamos. E que devemos
respeitar por meio do pagamento de um preço. Ou usufruir pelo convívio
e associação com os possuidores da riqueza. Convívio que
pode ser de contrato de investimento para o lucro, ou de subordinado como trabalhador
por conta de outrém, porém a sujeitar-se às clausulas do
contrato e da ideologia que esteja no poder. Não é estranho, porém,
que o denominado neoliberalismo tenha ressuscitado as ideias de Hume e Smith
e condenado as Críticas dos Hegelianos como Feurbach e Marx, que escrevem
sobre a essência da religião como a transferência das incapacidades
produtivas e de lucro do ser humano sem livre arbítrio, para uma divindade.
Que apoia a falta de bens e concede benefícios miraculosos aos descosidos
do mundo. Bem sabemos que o trabalho sistemático dos seres humanos, é
o de juntar bens para poder viver em paz e pactuar alianças com os proprietários
do poder, ou gestores conjunturais. Esses que, cada dia mais, transferem às
mãos privadas os capitais de empresas caras para a interacção,
como a água, as estradas, a electricidade, a saúde, o ensino,
as comunicações, a iniciativa. Não é estranho ver
que a educação passa a ser orientada pelos saberes que dão
lucro e que, as humanidades, essas que criam a inteligência dos povos,
ficam em segundo plano, ou, simplesmente, desaparecem para serem substituídas
por tecnologias que criam bens que implementam o crescimento do Ingresso Nacional.
Tal e qual são considerados os sindicatos: uma arma desprezível
por ter a capacidade de fixar condições de trabalho. Para quê
sindicatos, diz o neoliberalismo, se há a capacidade de se ser uma empresa
individual e autónoma, que investe nos juros que os Bancos e o Estado
Globalizado, andam a criar?.
4. O Caos da criança
Apenas duas palavras. A criança vive entre a ideia da divindade que
lhe é incutida. E a ignorância da opção para o investimento.
Especialmente, esse que os seus adultos fazem sem nada explicar aos mais novos,
porque é suposto que a criança não sabe calcular. Para
quê, porém economia? Catequeses, a pedra fundamental da opção
adulta, da estrutura da interacção necessária para criar
recursos vendáveis para os países os nossos parceiros na economia
globalizada que hoje se começa a impor dentro dos próprios países
que procuram o bem comum, bem comum esse baseado no lucro individual e no trabalho
infindável para o qual a criança é treinada na catequese
desde os seus primeiros dias. Quer no lar, quer nas aulas de Doutrina Cristã.
Desse Kaos deve surgir, de certeza, a sociedade à qual, nós
em Portugal, não estamos habituados: a da concorrência que faz
ficar de parte a reciprocidade ou colaboração denominada por nós,
antropólogos, entreajuda. Um conceito observado por nós no nosso
trabalho de campo com observação participante. No País
da Concordata que coloca por cima da lei, a um grupo que, por coincidência,
possui. Tal e qual Adam Smith e o seu discípulo o Duque de Baccleuch,
dos seus amigos aristocratas e proprietários da terra e das rendas, do
seu professor preferido, François Quesnay, Enciclopedista, Médico
de Luis XV e fundador dos Fisiocratas. Que nem Marie Joseph Paul de Lafayette
nem Benjamim Franklin, conseguiram abater. Quanto mais será para os docentes
portugueses? Talvez uma nova Revolução venha a ser necessária
para lembrar à criança em Kaos, essa que procura os lucros
e o lazer entremeado com o trabalho produtivo, para lhe lembrar os princípios
do 25 de Abril de 1974. E que os seus pais lhes saibam dizer. Se esses pais
não andam já no meio das concorrências que a vida social
actual manda, queiram ou não, por meio da Teoria Religiosa que dizem
não praticar, mas que entendem: daí a monogamia, a paternidade
responsável, a luta contra o aborto, o esquecimento do sindicalismo,
a fugida à sempre existente União de Facto, que era denominada
Amancebamento ou Adultério. Onde andam os Republicanos no meio de uma
Globalização que transfere o aposentamento para os PPR? Essa ideia
da Livre Vontade ou Livre Arbítrio de Paulo da Tarso, Agostinho de Hipona,
Tomás de Aquino, Adam Smith, François Quesnay, Rose Marie e Milton
Friedman, e de Karol Wojktila, que assinou o Catecismo que governa aos cristãos
romanos?
O caos da criança deixaria de existir se é ensinada que a sua
fé é parte da economia pela qual rege o seu comportamento na vida
quotidiana, tal e qual é exigido pela União Europeia e aceite
por nós em Portugal. Onde, felizmente, há liberdade de expressão...
Raúl Iturra
ISCTE/CEAS
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