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"Bird still fly"

Este textinho é uma overdose de citações. Outros o disseram e eu fui parasitando. Afinal, não seremos todos um pouco de cada encontro em que não estivemos distraÍdos?

"Uma utopia é uma possibilidade que pode efectivar-se no momento em que forem removidas as circunstâncias provisórias que obstam à sua realização"

(Musil)

Tal como o Rubem, também eu "quero uma escola em que o saber vá nascendo das perguntas que o corpo faz. Uma escola em que o ponto de referência não seja o programa oficial a ser cumprido (inutilmente!), mas o corpo da criança que vive, admira, se encanta, se espanta, pergunta, enfia o dedo, prova com a boca, erra, se machuca, brinca. Uma escola que seja iluminada pelo brilho dos inícios". Quero "ir à Primavera", persigo a utopia que me diz ser possÍvel que aquilo a que chamamos "Escola" possa sair de um longo, muito longo Inverno. Chamai-me utópico, que não serei o único e tomarei o epíteto como elogio.

Tão romântico como o Rubem, o Laerte não desiste, o sonhador Laerte resiste, o Laerte insiste na sua prática de uma alquimia libertadora de afectos. E ? benditas as escolas que tais professores têm! ? a Ondina, a Gracinda, o Pedro e outros "amadores" sensíveis e atentos acolhem e replicam a mensagem peregrina.

"A Educação é um acto de amor, por isso, um acto de coragem. Não pode fugir à discussão criadora, sob pena de ser farsa. Como aprender a discutir e a debater com uma educação que impõe?" (Paulo Freire)

Quem dera que todas as escolas fossem lugares onde se permanece o tempo preciso para realizar o projecto de um sonho. Lugares de onde se parte para levar sementes de sonho para outros lugares, ou para deixar que o sonho de fazer crianças mais felizes prossiga.

No belo exercício de sensibilidade que dá pelo nome de "Tudo sobre a minha mãe", um dos personagens assegura sermos "tão mais autênticos quanto mais nos parecermos com o que sonhamos". A utopia de Freire projecta-se na sétima das artes. Só não logrou afectar a Pedagogia que, apesar de reconhecida como arte, nunca teve direito a número de série. Ainda que, nos palcos onde o drama educativo se desenrola, os vulgares actores contracenem com fugazes personagens que buscam a síntese possível entre ciência e arte. Chamemo-lhes "românticos da educação".

O quotidiano de um "romântico da educação" (R.E.) pode ser comparado a jogos de computador em que muitos alunos das nossas escolas são exímios. Nesses absorventes jogos, o "herói" vai ultrapassando obstáculos e acumulando pontos que se transformam em "vidas" (é mesmo assim na linguagem virtual), prolongando o jogo até ao limite que a destreza dos polegares e indicadores permite.

Quando o jogo parece irremediavelmente perdido, o R.E. atinge a pontuação que lhe dá uma nova "vida". Porém, alguns R.E. entram no jogo em desvantagem, dado sofrerem sozinhos o desgaste imposto pelo exercício da profissão em contextos adversos. Estes são os "românticos da educação solitários".

A dureza das "aulas", o stress provocado pela "indisciplina", o "mal estar docente" que se instala e introduz penalizações no jogo, debilita o R.E. solitário e condu-lo ao limiar de um fatal desenlace. O monitor avisa: energia disponÍvel a 40%... energia a 20%... 5%... "game over".

No decorrer do jogo, o R.E. solitário poderá conquistar duas ou três precárias "vidas", mas soçobra face a obstáculos que uma drástica quebra de energia já não lhe permite ultrapassar. Raramente consegue ascender aos nÍveis virtuais mais elevados. Tal como na vida real, queda-se por nÍveis discretos e protectores, não arrisca. Nem qualquer outro jogador solitário prudente o faria, tal o poder dos "génios do mal" que beneficiam da iniciativa do jogo e dispõem de inesgotáveis manhas e armadilhas. O R.E. começa o jogo sozinho. O R.E. desiste do jogo sozinho.

"Podes sair-te bem em Cafarnaum. Diz apenas uma coisa muitas vezes. Aquela gente é como pedras e surda. Não te preocupes se eles ouvem. As palavras também são criaturas minhas e viajam por muitas estradas"

(Norman Mailer)

Os "românticos da educação solidários" participam no mesmo jogo do R.E. solitários. Mas, se não conseguirem alterar-lhe as regras, contrariam as lógicas e pervertem os desfechos. Quando o "monstro-burocracia" está prestes a abocanhar um R.E. solidário, surge logo um outro R.E. solidário que enfrenta e distrai o monstro, o que propicia uma folga ao colega de equipa. Este, rapidamente, recupera "energia" e regressa à liça, num segundo fôlego que surpreende e desgasta o opositor. E assim por diante... A cada investida de monstros e génios do mal, os teimosos R.E. solidários reagem em bloco, quebrando-lhes o ímpeto, repelindo com êxito todos os ataques.

Por mais maciços e violentos que sejam os assaltos, o jogo termina, inexoravelmente, como numa telenovela: os bons ganham aos maus. Os R.E. solidários atingem o derradeiro nível, inacessível aos "bichinhos glutões".

Os R.E. amantes dos jogos de computador já estarão, certamente, a perguntar pela estratégia. Ora, aqui vai: aos R.E. solidários não basta sê-lo. Mais que "românticos marginais", é preciso que ajam como "românticos conspiradores" e introduzam vírus no disco rÍgido.

"Sou livre, faço o que bem me apetece e quero, coisa que muitos dos grandes deste mundo e os prelados vestidos de púrpura não podem dizer"

(Thomas More)

Arriscarei afirmar que há uma "reforma" silenciosa (não-virtual) a acontecer um pouco por toda a parte. Sempre a começar, inesperada, marginal, inédita... à semelhança do "jazz, nasce a todos os instantes ? para quem o inventa (ou reinventa). Está sempre no princípio". Os Românticos da Educação estão "na contra-mão da História", mas aprendem a surfar o dilúvio de lixo cultural em que a sociedade e a Escola se afundaram.

Obrigado, amigo Ademar, pelos "inícios" colhidos nos encontros de Sábado, enquanto a "Pipa" e o espírito de Charlie Parker sobrevoavam os comoventes rendez-vous de românticos que reinventam futuros para o Francisco, para o Henrique e para os filhos dos nossos filhos.

José Pacheco

  
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Edição:

N.º 102
Ano 10, Maio 2001

Autoria:

José Pacheco
Escola da Ponte, Vila das Aves
José Pacheco
Escola da Ponte, Vila das Aves

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