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Manuela Terraseca em entrevista a "A Página"

"A profissão docente é um exercício mais solitário do que solidário"

"Há perversões na formação contínua que seria importante desmontar"


A formação contínua de professores é uma das áreas educativas que mais debate tem proporcionado. À sua volta centram-se questões como o financiamento, as modalidades de formação ou a própria creditação, esta última muito contestada por se revelar um sistema falível na promoção das aprendizagens.

Uma das investigadoras que se tem dedicado a esta temática é Manuela Terraseca, mestre em Ciências da Educação pela Faculdade de Psicologia e de Ciências da Educação da Universidade do Porto, actualmente convidada na situação de requisitada naquela faculdade, desde Setembro de 1990, onde desempenha igualmente o cargo de Vice-Directora do CIIE - Centro de Investigação e de Intervenção Educativas da Faculdade de Psicologia e de Ciências da Educação. Nesta instituição, integra a equipa de coordenação do projecto "Avaliação de percursos e de Estratégias de Formação de Adultos numa Instituição à Margem do Sistema Educativo", participando igualmente em diversos projectos integrados no CIIE e na Associação de Desenvolvimento e Formação (ADEF), dos quais se destaca "A Escola: da autonomia funcional para a construção social", financiado pelo PRAXIS XXI.

Na ADEF integrou equipas de avaliação de Centros de Formação de Associação de Escolas e de um Centro de Formação de uma Associação de Professores. Desde 1979 que por convite de diversas instituições, de que se destacam a DGEB, a DGEBS a DREN e diversas escolas, planifica, selecciona e organiza material e actividades de formação para acções perspectivadas como sendo de formação contínua, e outras inseridas nos Planos de Formação das escolas. Feita a apresentação, segue-se a entrevista.

 

Qual é o âmbito de intervenção da Associação de Desenvolvimento e Formação (ADEF)?

A ADEF é uma associação que realiza investigação e formação, sobretudo formação de professores e educadores, e desde 1997 constituiu-se uma equipa que tem realizado avaliação externa de centros de formação de associações de escolas e de associações de professores - nomeadamente da Associação dos Professores de Educação Visual e Tecnológica que é de dimensão nacional. O ponto de partida comum aos investigadores que a integram é a postura perante as questões da formação e da avaliação, encarando-as como factores intimamente relacionados com o desenvolvimento da profissão. Nesse sentido, procuramos entender a avaliação dos centros de formação não numa perspectiva parcelar, mas antes debruçando-nos sobre as características da sua intervenção formativa de docentes: saber como se posicionam perante a profissão, perante os seus pares, como encaram as escolas e como se relacionam com elas, com a administração, etc... Enfim, tentar proporcionar uma visão mais global da formação.

Pode falar-se da existência de uma cultura de avaliação institucional em Portugal ou esse trabalho está ainda por realizar?

Se na avaliação das aprendizagens dos alunos há um trabalho que, mesmo em Portugal, já se vem realizando há quase três décadas, no que toca às instituições a questão da avaliação começou a colocar-se mais recentemente. É uma preocupação que surge, sobretudo, associada ao lançamento do projecto educativo de escola e da necessidade de regulação do seu processo de implementação, desenvolvimento e avaliação, que, lentamente, foi sendo interiorizada como uma necessidade de auto-análise e de auto-regulação institucional. No Regime Jurídico da Formação Contínua, em 1992, essa avaliação institucional aparece praticamente restringida ao necessário, isto é, à avaliação das acções de formação e dos formandos, numa lógica quase administrativa.

Num recente seminário organizado pela ADEF em colaboração com o CIIE, realizado em Fevereiro deste ano na Faculdade de Psicologia e de Ciências da Educação do Porto, chamou a atenção para a "evidente contradição" existente entre as normas aplicadas à formação e a regulamentação das práticas de formação, referindo inclusivamente que os centros de formação se limitam, muitas vezes, a gerir essa contradição como única forma de viabilizarem a sua própria existência. Como pode funcionar-se neste meio termo há quase dez anos e que implicações pode isso ter no sistema?

Em Portugal temos uma longa tradição de criação de textos legislativos muito interessantes, até mesmo vanguardistas, que depois acabam por não reflectir as práticas (como é o caso da nossa própria constituição). Ao nível da educação passa-se o mesmo. Em 1992, por exemplo, quando saiu o despacho sobre a avaliação dos alunos, o seu preâmbulo continha um conjunto de questões que, numa primeira leitura, se revelavam interessantes e pertinentes. Mas a forma como se pretendeu normalizar as ideias ali expressas acabou por perverter o conteúdo original. Ora, estas disfunções acabam, em última análise, por impedir a desejável evolução e renovação do sistema.

O mesmo acontece com os centros de formação. Quando se diz, por exemplo, que os centros de formação devem partir de uma associação de escolas, isso não acontece. Os centros de formação servem unicamente para "juntar" escolas. Não foi com base na ideia de associação, de cooperação, que assentou a sua constituição.

Aliás, citando João Barroso e Rui Canário, refere que os centros assentam na criação de "coisa nenhuma", já que não têm suporte jurídico nem organizacional...

Exactamente. Além disso, eles limitam-se a juntar escolas de um ponto de vista meramente geográfico, não do ponto de vista dos seus interesses comuns. As escolas são compelidas a associar-se numa perspectiva de territorialização que radica numa visão burocrático-administrativa e não daquilo que emerge do terreno. E quando não existe uma verdadeira associação de interesses as coisas não funcionam.

Um bom exemplo disso mesmo foi a criação dos Territórios Educativos de Intervenção Prioritária e agora os Agrupamentos de Escolas, cuja criação acaba muitas vezes por cortar relações que já existiam em alguns casos. Ou seja, e voltando à questão dos centros de formação, as suas comissões pedagógicas, que reúnem os representantes dos conselhos pedagógicos e executivos das escolas, não funcionam porque as pessoas não têm nem representam interesses comuns.

O modelo em que assenta a constituição das comissões pedagógicas é, aliás, de acordo com a sua opinião, uma das questões a repensar no processo de formação contínua...

Também, apesar de devermos admitir que estes processos não são simples.

De qualquer forma, é indesmentível que a administração central nutre uma grande preocupação com o controlo dos processos, e isso obriga a uma regulamentação demasiado apertada para que eles possam funcionar de acordo com as lógicas locais. Aliás, é sabido que nunca a autonomia foi tão regulamentada como agora... E o facto é que a formação está muito distante daquilo que é o exercício profissional "de facto" dos professores. Nesse sentido, há um conjunto de perversões na formação contínua que seria importante tentar desmontar.

Porquê essa preocupação da tutela em controlar de perto os processos?

Talvez por termos um estado centralizador e por não se confiar nas capacidades de autonomia, de auto-gestão e de auto-regulação dos professores; ou talvez por não se acreditar que a profissão docente seja suficientemente interessante para que os seus actores queiram saber mais, desejem evoluir... Não sei...

Mas é um facto assumido - e basta olharmos para as experiências à nossa volta - que a larga maioria dos professores se inscreve actualmente em acções de formação por razões que nem sempre se prendem directamente com o seu interesse pelo desenvolvimento da profissão. Claro que uma formação de carácter assumidamente individual - como também acontece hoje em dia - tem necessariamente de descambar em situações como esta...

Essa será talvez uma das questões mais preocupantes: verificar que a formação privilegia o saber individual em detrimento do saber de grupo. Porquê esta tendência individualizante da formação?

A profissão docente é - e sempre foi - um exercício mais solitário do que solidário. Houve momentos em que se viveu um ambiente diferente, como no período pós 25 de Abril, durante o qual tive o privilégio de entrar na actividade docente, em que de facto parece ter existido um espírito generalizado de inter-relacionamento e de cooperação.

Nessa altura, a formação de professores assentava no modelo de profissionalização em exercício, realizada na escola, centrada na vertente turma, vertente escola e vertente sistema educativo. Não sei se seria exactamente um modelo exemplar, mas tinha muitas virtualidades. Tenho muito pena que ele não tenha sido devidamente avaliado e, com algumas modificações, não tenha continuado a ser implementado. Claro que neste aspecto também pesa a vertente económica, e este era um modelo dispendioso.

De acordo com aquilo que está legislado, com a retórica oficial, os centros de formação, supostamente, fazem essa reaproximação, mas, com as tais contradições a que atrás me referi, acho que não conseguem efectivá-la. Quando "vou" à formação - é esta a expressão comummente utilizada - por outras razões que não as intrinsecamente relacionadas com a minha vida profissional, é evidente que me estou a afastar do contexto de trabalho. Ainda que a formação seja realizada na minha própria escola...

Mas isso justifica que não exista uma cultura de trabalho de grupo?

A maneira como a pergunta está posta tende, aparentemente, a responsabilizar o professor. Eu não tenho a certeza de que essa seja uma escolha do professor. Na minha opinião existe uma espécie de determinismo que foi criado que faz com que o professor não tenha muitas alternativas. A organização das escolas e da formação empurra-o para esse "fado".

Os professores são formados muito disciplinarmente e sentem-se mais à vontade na "sua" matemática, na "sua" biologia, etc... Se pensarmos nas relações no interior da profissão, nos modos de organização das escolas e nos ritmos e tempos escolares, o professor é levado a afastar-se dos restantes colegas. Os seus momentos de reunião são preenchidos com tarefas de carácter burocrático, afastando-os do debate das questões centrais da sua profissão. Se houver uma aproximação será aos colegas da mesma área disciplinar. Mas também ao nível da construção dos saberes profissionais o professor é compelido a um exercício solitário da docência. É a própria formação inicial dos professores que também os "empurra" para essa atitude solitária.

Mas a formação contínua não deveria servir, entre outras finalidades, para inverter esse processo?

Deveria, mas para isso era necessário que se reconhecesse mais atentamente o trabalho dos professores nas escolas, e não se reconhece. O único trabalho de formação que é reconhecido é o que é feito fora da escola, que é realizado num determinado local, num determinado tempo, perante uma presença comprovada e um trabalho final de avaliação (ou melhor dizendo, de controlo da sua presença...). O trabalho na escola é muito importante, mas não é valorizado porque não há ninguém que veja, ninguém que o controle.

Está a tentar dizer-me que o sistema de créditos não é o mais apropriado para avaliar o desempenho dos professores?

Absolutamente...

Então, que alternativas?

Não vejo que actualmente haja propostas muito diferentes. Mas deixe-me retomar uma ideia que há pouco não desenvolvi e que se liga com a questão de como inverter aquilo a que chamou "a tendência individualizante da formação" e que reside na realização da formação segundo modalidades que pressupõem a organização dos professores e a aproximação aos respectivos contextos de trabalho. Mas o caso das modalidades de formação é outro exemplo acabado de como o discurso pode ser bem pensado, mas a concretização não corresponder às expectativas.

A modalidade de curso, por exemplo, utilizada frequentemente mas que supostamente está muito distante do contexto de trabalho e mimetiza a relação professor-aluno, levou à tentativa de implementação de outras modalidades de formação, que, previstas no RJFC só mais tarde são regulamentadas e em princípio estariam mais próximas desse objectivo: as modalidades de projecto, círculo de estudos e oficina. Simplesmente, mais uma vez, a forma como são desenhadas e o modo de como são "controladas" perverte-as por completo. O grande problema no nosso sistema é criar ideias interessantes e depois não confiar na possibilidade de os professores as realizarem e reinterpretarem.

Outro dos factores que perverte o conceito de autonomia dos centros de formação é a escolha dos formadores, que está prevista mas não é aplicada...

Que não é nada livre; é, aliás, muito condicionada. Porque razão se considera que um professor não está habilitado para se formar e formar os seus pares? Porque é que o professor só é reconhecido como alguém capaz de formar outros se não for seu par? Só quem tem uma formação acrescida pode ser formador. Claro que isto está directamente relacionado com compromissos que ultrapassam os critérios nacionais, como o reconhecimento internacional, nomeadamente europeu. Mas desta forma poderá estar a desperdiçar-se as potencialidades e as virtualidades dos actores locais, além de ser altamente desprestigiaste para a figura do professor.

Outro dos constrangimentos da formação contínua prende-se, na sua opinião, com o facto de a formação se basear essencialmente em pressupostos científicos e disciplinares, centradas no ensino e só "muito remotamente" na aprendizagem. Isto desvirtua de algum modo o sentido da formação contínua...

Também aí os centros de formação lidam com um dilema, que é a escolha dos formandos. Os centros de formação não têm uma completa autonomia financeira, já que são financiados por entidades que dependem de outras tutelas - existe aliás um estudo realizado pelos professores José Alberto Correia, Henrique Vaz e João Caramelo que demonstra que uma elevada percentagem dos centros de formação da zona Norte dependem exclusivamente de financiamento externo. Ora isso leva a que os centros de formação se preocupem prioritariamente em organizar formação nas áreas que prevêem ter uma procura "assegurada".

Será que é possível caminhar no sentido da autonomia financeira?

Se se entender por autonomia financeira o facto de os centros de formação serem financiados e a gestão desse financiamento não ser "controlado" segundo uma grelha de análise tão rígida, que por vezes inviabiliza iniciativas interessantes, pode dizer-se que sim. Percebo pouco de gestão financeira, mas esta questão radica mais numa opção política, e acredito que o funcionamento das instituições deve basear-se fundamentalmente num registo de confiança e de responsabilização.

Um registo de confiança e de responsabilização que parece também estar cada vez mais afastado do processo de autonomia das próprias escolas...

Jacques Ardoino distingue de uma forma muito interessante os conceitos de controlo e de avaliação, dizendo que o primeiro se exerce de tal forma que possa ser feito por diversos controladores num registo semelhante, ao contrário da avaliação, que contribui para a construção do sentido do próprio objecto de avaliação que, aliás, também não pré-existe à avaliação. Ou seja, ao contrário dos controladores, os avaliadores não são inter-permutáveis. E ele usa uma imagem curiosa para ilustrar a ideia de que o excessivo controlo constrói o próprio "autocontrolado": na utilização de bilhetes de autocarro ou de metro, por exemplo, apesar de sabermos que temos uma possibilidade remota de sermos interpelados pelo cobrador (controlador), adquirimos uma tal noção de auto-controlo que compramos os bilhetes e os obliteramos sempre.

A autonomia nas escolas funciona, de algum modo, assim. É uma autonomia que funciona no registo do "faz-se assim porque é assim que já está regulamentado" e "é assim que eles querem que se faça". É o caso do regulamento interno das escolas, no qual supostamente haveria inteira autonomia para o construir, mas que se não se obedecesse a determinados pré-requisitos não era aprovado pela direcções regionais de educação...

Na mesma linha de pensamento, os centros de formação vão ganhando alguma autonomia, mas para tentar gerir da melhor forma possível as dependências a que estão sujeitos.

Ou seja, poderá dizer-se que o funcionamento das escolas e do próprio exercício da profissão está de algum modo circunscrita pelos trâmites normais do funcionalismo público, não havendo, por isso, uma verdadeira autonomia da actividade docente...

Apesar de ser uma profissão que se exerce num alto grau de exposição e de responsabilização pública... Mas de facto, o que é exigido ao professor é que dê o programa e que não falte muito. Ou seja, a figura do "bom professor" está balizada por questões administrativas. Esta lógica de funcionalismo público, como referiu, e com a qual estou em parte de acordo, leva a que se tornem principalmente visíveis os maus casos de docência e não os bons casos. Não partilho da lógica das escolas e dos professores exemplares, como a elas se referia um ex-ministro, considero é que é necessário revalorizar a profissão, reconhecendo e permitindo que as pessoas desempenhem a sua profissão numa perspectiva evolutiva, e não como alguém que só tem dificuldades e falhas a superar. Claro que dificuldades existem, mas deve-se é partir das potencialidades existentes, rejeitando um pensamento carencialista e realçando a vertente positiva da profissão.

Penso até que algo que tem provocado uma certa despromoção da docência como exercício intelectual é a actual proliferação de manuais escolares e de guias e auxiliares para os professores, que acabam por regular excessivamente o papel do docente e são altamente contraproducentes: por um lado, os que são mais promovidos e sujeitos a um grande investimento, por parte das editoras, em termos de distribuição, são precisamente os que estão elaborados de uma forma muito orientadora da intervenção dos professores e da actividade dos alunos, e não funcionam como fonte de enriquecimento e despoletamento de outras ideias. Nesse sentido, é uma ferramenta que instrumentaliza e desprofissionaliza os professores, em vez de permitirem reflectir sobre a sua profissão.

As previstas alterações introduzidas pela revisão curricular do ensino básico vão exigir outras competências aos professores. A formação contínua está apta a responder a essas mudanças?

Continuando a pensar que o professor é incitado a frequentar individualmente a formação e que ela está forjada nesse sentido; que as escolas continuam a estar organizadas de forma a que os professores trabalhem isoladamente, penso que não. Mas se me pergunta se a formação contínua se irá organizar para responder a isto, eu digo-lhe que sim, que vão ser - já há este tipo de "oferta" de formação - organizadas acções de formação centradas nas novas áreas, isto é, no estudo acompanhado, na área de projecto... Duvido é que consiga dar respostas interessantes...

Entrevista conduzida por: Ricardo Jorge Costa

  
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Edição:

N.º 102
Ano 10, Maio 2001

Autoria:

Manuela Terraseca
Fac. de Psicologia e Ciências da Educação, Univ. de Porto
Manuela Terraseca
Fac. de Psicologia e Ciências da Educação, Univ. de Porto

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