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Fialho de Almeida, um Escritor de Transição

TALVEZ seja sina da nossa literatura (e mesmo da história da cultura portuguesa) esquecer hoje os grandes escritores de ontem, mesmo que ainda mereçam ser lidos e apreciados pelo que de 'moderno' ou de 'actual' ressoa nas suas obras. Fialho de Almeida é um desses esquecidos, não por sê-lo realmente, mas tão-só porque não é fácil (ou não era até há pouco tempo) encontrar no mercado as suas obras em edições mais acessíveis. E, assim no correr dos anos, o nome do autor de Os Gatos foi ficando apenas como referência obrigatória na literatura das primeiras décadas deste século, como escritor que foi da transição (cultural, social e política, sobretudo) do século passado para o nosso, nos embates e conflitos ideológicos que as lutas e o advento da República desencadeou a diversos níveis da sociedade e cultura da sua época. Mas se um escritor é sempre do seu tempo, não podemos deixar de ter em conta (quando os sinais de clara modernidade ultrapassam as barreiras desse tempo em que vivem e se projectam num futuro que há-de prolongar essa releitura e atenção bem merecida) que a sua obra deve ser olhada e lida à luz de valores estéticos e literários que se reincarnam ou se reactualizam em perspectivas históricas diferentes só na aparência.

Portanto, escritor de um tempo de transição, Fialho é ainda hoje, e deverá continuar a ser, um dos escritores portugueses de imediata referência quando se procura entender as coordenadas dessa época, dentro de valores que, interpretados na atenção crítica do seu próprio tempo, resvalaram (talvez porque a sociedade portuguesa se manteve imobilizada ou não avançou no desenrolar dos anos o tempo suficiente para que ficassem desactualizados os valores que serviram como pano de fundo a essa obra de características bem marcantes na literatura portuguesa) em sentido de idênticas perspectivas e se afirmam como retrato próximo de uma 'realidade' que se não modificou nem transformou.

Ora, a antologia pessoal feita em 1984 por Manuel da Fonseca, num livro que consumou o sonho de tantos anos de pesadelo, devia ter realmente merecido palavras de entusiasmo e viva atenção crítica. Nascido em 1911, exactamente no ano da morte de Fialho, o autor de Seara de Vento, em trabalho de desprendida admiração intelectual, traçou no seu vigoroso estudo introdutório as linhas essenciais que pautaram o caminho literário do autor de País das Uvas. Mas não foi apenas a mútua condição de alentejano que marcou e se acentuou positivamente nessa antologia que agora relemos das melhores páginas de Fialho: a essa circunstância juntaram-se razões de outra natureza, que não devemos esquecer e de perto se entrelaçam no itinerário destes dois escritores.

Em tempos diferentes e em épocas semeadas de lutas ideológicas bem definidas, o caminho de Fialho cruzou-se por Lisboa, em horas de sacrifício

e tormenta, de estroinice e boémia, em aventuras e canseiras, porque nisso, é verdade, os fados da sorte e da vida se conjugaram em idêntico destino: Fialho de Almeida e Manuel da Fonseca viveram em Lisboa um tempo de solidão bastante para se entreolharem no espelho da vida e detectarem assim os sinais mais evidentes que perduraram nessa comum aventura. E daí se entender (se entender literariamente basta para se ter em conta a importância literária do texto introdutório com que Manuel da Fonseca 'justificou' esta antologia de Fialho) a dimensão calorosa das suas próprias palavras e intenções, trazendo à luz do dia alguns dos mais belos contos, crónicas, retratos e páginas de crítica do 'esquecido' e assim 'recuperado' escritor de Cuba, no coração do Alentejo.

Mas o que mais sobressai nesta antologia é o sentido das palavras e o modo apaixonante como soube captar, mais nas entrelinhas do que naquilo que expressamente se não diz, as razões pessoais que levaram o autor de Poemas Completos a realizar esse trabalho, lendo e relendo Fialho com a atenção e admiração que só uma'alma e espírito' inconfundível de alentejano poderia fazer deste modo, procurando acentuar, em observações de lúcido rigor crítico, a actualidade e a modernidade literárias que se descobre na obra do autor de Os Gatos. Mesmo nos pormenores de uma biografia conhecida, pontuando os altos e baixos da personalidade do grande prosador, o que mais se reflecte, de modo bem expressivo e intencional, é a 'caracterização' das condições de vida e de luta, como crítico implacável de certas figuras do seu tempo (por exemplo, o retrato de Barjona de Freitas pode ser entendido em relação a muitos dos 'políticos' que ainda hoje proliferam na nossa cena política, mandadores sem lei ou paus-mandados para todo o serviço), que marcaram a prosa de Fialho e dela se revelam como indícios de oiro de uma obra que deve ser colocada no primeiro plano da literatura portuguesa.

E, todavia, no acto de justificar estas observações, devemos incidir num aspecto de primeira grandeza e não muito vulgar na literatura do nosso tempo: ver como um escritor de dimensão literária e humana de Manuel da Fonseca se não poupou ao trabalho de trazer à primeira linha o nome e a obra de Fialho de Almeida, sem se penitenciar de ter (pelas circunstâncias da vida, do meio e do tempo) seguido por um idêntico trajecto literário. Na verdade, relendo alguns contos de Fialho é natural que os leitores de hoje se recordem e evoquem outros contos de O Fogo e as Cinzas, porque ao relermos as crónicas de Fialho, não se pode deixar de ter um sorriso perante as crónicas ou histórias humaníssimas que Manuel da Fonseca também soube escrever e contar.

Não se trata, claro, de apontar certas influências literárias, mas tão-só recordar e pôr em destaque os propósitos que o levaram a escolher alguns dos contos e crónicas de Fialho no sentido de uma visceral paixão literária: no paralelismo desses caminhos, na distância do tempo, nos reencontros da vida e da inalterável paisagem alentejana, Manuel da Fonseca recuperou, pois, a verdadeira imagem de Fialho e trouxe o seu nome para o lugar que por direito ainda hoje merece. E só essa intenção literária é por si razão de sobra para se reler com redobrado entusiasmo e prazer muito do que de melhor existe na obra literária desse 'louco e bom Fialho', como dele falou Raul de Carvalho num poema de repassada mágoa e desalento.

Por fim, salientarmos que a releitura de Fialho permite fazer justiça a um escritor tão esquecido (e não menos esquecido, talvez de outro modo, estão alguns nomes importantes da nossa literatura, como Afonso Duarte, Edmundo de Bettencourt, Armindo Rodrigues, José Marmelo e Silva, Cabral do Nascimento, Faure da Rosa, Manuel do Nascimento e outros) e que por estas páginas se nos revela de uma clara modernidade literária. Pela força expressiva da sua prosa, matizada de um colorido que não perdeu força nem actualidade, pelo empenhamento denunciador em muitas das suas crónicas, marcadas por um entranhado amor à terra e aos homens, Fialho é ainda um escritor que se lê e relê com vivo entusiasmo. E por isso se deve enaltecer esse esforço de paixão literária levado a cabo por Manuel da Fonseca, confirmado nestas suas palavras:

'Narrador admirável, fluente e lúcido, descobrindo de imediato o lado vulnerável do inimigo e de estocada pronta a trespassá-lo, malicioso no entremostrar de situações dúbias, brutal nas cenas de violência, aliciante no irisar da ironia, seco e amargo no desencanto, fugidio como guizalhada de risos nas pantomimas do burlesco, de imaginação veloz, voada de golpes de mágica, súbito no sarcasmo renitente, escancarado, as mais das vezes corrosivo, Fialho levou sempre ao extremo a agressividade a quantos lhe caíram sob a alçada inexorável e dolorida da pena'.

E não só por nos colocar diante à nossa disposição algumas das mais belas e esquecidas páginas de Fialho, mas sobretudo por nos abrir os olhos no prazer de reencontrar, nas linhas desse discurso, o sentido primeiro da sua arte literária. E ser ainda hoje, repetimos, o exemplo de escritor para quem escrever bem não foi um 'vício' alimentado ao longo de muitos anos. Assim, irmanar Fialho e Manuel da Fonseca na alegria dessa 'descoberta' é, para nós, não apenas um acto estimulante de leitura, mas também uma forma sincera e vibrante de caminharmos lado a lado na releitura das nossas coisas e entender a literatura como modo de ser a voz pessoal e singular de muitas outras vozes.

Serafim Ferreira


  
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Autoria:

Serafim Ferreira
Escritor e Crítico Literário, Lisboa. Colaborador do Jornal A Página da Educação.
Serafim Ferreira
Escritor e Crítico Literário, Lisboa. Colaborador do Jornal A Página da Educação.

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