Página  >  Edições  >  -  >  Ensino da Filosofia e Exegese

Ensino da Filosofia e Exegese

Desidério Murcho *

Quero partilhar com os leitores algumas ideias sobre o ensino da filosofia analítica. Uma vez que o próprio conceito de filosofia analítica é razoavelmente pouco conhecido, escolhi a exegese como a actividade em relação à qual a filosofia analítica se distingue claramente da continental. O meu objectivo é disponibilizar alguma informação que julgo importante não só para a tomada de decisões de fundo no que respeita ao ensino da filosofia, mas também para a prática docente quotidiana. A ênfase é colocada sobretudo no ensino liceal da filosofia, mas sem perder de vista o ensino universitário.

A pequena cultura filosófica portuguesa pertence a um sector muito específico e minoritário, em termos mundiais, da prática filosófica internacional. É comum designar-se esta forma minoritária de fazer filosofia como 'filosofia continental', porque é sobretudo nos países do continente europeu (França, Portugal, Espanha, Itália e parte da Alemanha) que se cultiva esta forma de fazer filosofia. A filosofia analítica é dominante em países como o Reino Unido, os EUA, a Austrália, alguns países nórdicos europeus e parte da Alemanha. Nos países de forte tradição continental, como a França e a Espanha, o movimento analítico tem vindo a crescer ao longo dos anos, apesar de continuar, nesses países como em Portugal, claramente minoritário.

Toda a gente conhece a filosofia continental: foi o que nos ensinaram e continuam a ensinar no liceu, é o que se ensina nas universidades e a maior parte dos livros e revistas de filosofia são de perfil continental. Uma das características que distinguem a forma analítica de fazer filosofia da forma continental, sobretudo portuguesa, baseia-se na diferente posição que tomam em relação à exegese filosófica. Ao passo que para os continentais a exegese filosófica não se distingue da simples paráfrase, os analíticos distinguem esta da formulação, identificando com esta última o sentido da expressão 'exegese filosófica' mas não com a primeira.

A distinção entre a paráfrase e a formulação pode ser facilmente captada se tivermos em conta que alguém que nada perceba de medicina ou música pode no entanto parafrasear eficientemente um texto de medicina ou música do século XVI, bastando para tal conhecer a língua em que tal texto foi escrito, ao passo que para formular o conteúdo de um texto de medicina ou música do século XVI já é necessário saber medicina ou música, consoante o caso.

Compreende-se assim por que razão outra das características que distinguem a maneira analítica de fazer filosofia da maneira continental consiste na hierarquia conceptual dada à exegese filosófica: para um filósofo analítico só é possível fazer exegese filosófica depois de se saber filosofia, ao passo que os continentais defendem que se aprende filosofia a fazer exegese, o que aos olhos dos analíticos é tão absurdo como defender que se aprende medicina ou música lendo os textos clássicos da medicina ou da música.

Para um filósofo analítico a expressão 'exegese filosófica' significa 'formulação' e não 'paráfrase', pois não podem existir 'paráfrases filosóficas', uma vez que a filosofia pressupõe uma compreensão crítica e a paráfrase apenas pressupõe a capacidade mimética. Esta divisão, entre analíticos e continentais, quanto ao significado da expressão 'exegese filosófica' é a causa última do tipo de ensino da filosofia praticado em Portugal, e que aos olhos dos analíticos não passa de uma caricatura do que é o verdadeiro ensino da filosofia. Nos liceus e nas faculdades, os alunos de filosofia são lançados, sem preparação, para os textos clássicos da filosofia (numa atitude que a um analítico parece autêntico terrorismo intelectual), sendo-lhes exigido em troca um conjunto mais ou menos bacoco de paráfrases em que os mais disparatados erros, as mais gritantes ambiguidades e imprecisões e a mais evidente incompreensão dos problemas, argumentos e teorias que os filósofos discutiram ao longo dos tempos são sinais infelizes de um tipo de ensino que não tem capacidade para formar pessoas que sabem, sobretudo, pensar, mas antes pessoas que sabem, sobretudo, repetir.

A formulação dos problemas, teorias e argumentos da filosofia permite ao aluno perceber os problemas, teorias e argumentos da filosofia, ao passo que a sua paráfrase não lhe permite senão a repetição mecânica das palavras dos filósofos. É por este motivo que a avaliação dos alunos de filosofia, sobretudo no liceu, é um problema latente em Portugal. Uma vez que não são transmitidos aos alunos conteúdos cuja formulação mais ou menos precisa seja possível avaliar de forma justa, mas antes conjuntos de frases que os alunos devem repetir de forma mais ou menos vaga, o professor nunca sabe se está perante um aluno com uma excepcional verve filosófica, se perante alguém que nada percebeu, acabando todos por ser avaliados em função de critérios extra-filosóficos como a qualidade do português, a quantidade de autores referidos por cada frase e a capacidade para citar a bibliografia de forma competente.

O filósofo analítico, por outro lado, sabe exactamente o que está a avaliar, tal como um professor de música ou de medicina. Existem conteúdos filosóficos precisos cuja maior ou menor compreensão, tal como é revelada pela sua formulação escrita e oral, pode ser avaliada de forma justa. Tal como um professor de medicina avalia até que ponto um aluno compreendeu o processo digestivo dos seres humanos e tal como um professor de música avalia até que ponto um aluno compreendeu o conceito de intervalo musical, também o professor de filosofia analítica avalia até que ponto um aluno compreendeu a teoria da referência de Kripke ou os argumentos cépticos da segunda Meditação de Descartes.

Outra das consequências da diferente concepção de exegese filosófica que distingue os analíticos dos continentais é a ausência conspícua de livros de introdução à filosofia, do lado continental, e a sua abundância, do lado analítico. De facto, como escrever um livro de introdução à filosofia quando a concebemos como a arte, mais ou menos delirante, da paráfrase? Se vamos explicar o conceito de frase analítica, temos de parafrasear Kant ou Quine, citando ambos os autores abundantemente; nada mais resta fazer. Não há quaisquer conteúdos conceptuais que possam ser organizados e apresentados didacticamente, do mais simples para o mais complexo, do mais importante para o menos importante. Quando se tem um conceito continental de filosofia nada resta excepto a paráfrase. Mas isso é negar à filosofia o papel crítico que faz parte da sua própria essência, e sem o qual ela se torna um exercício oco culturalmente empobrecedor e, sem dúvida, verdadeiramente redutor.

Para terminar, gostava de afirmar claramente que da minha posição favorável à filosofia analítica não se segue que eu ache que a filosofia continental deva acabar. Defendo e sempre defendi a tolerância e a liberdade. Acontece que, da mesma maneira que acho que os partidários da filosofia continental têm o direito de estudar, ensinar e divulgar a sua prática, também acho que os partidários da filosofia analítica têm o mesmo direito. Esta posição não deve confundir-se com um relativismo mais ou menos irresponsável, no qual tudo é igual a tudo; é apenas o resultado de um princípio que me parece sensato: nestas matérias pacíficas, as pessoas têm o direito de estar erradas. Compete ao público fazer a sua escolha.

*Desidério Murcho

Sociedade Portuguesa de Filosofia

Av. da República, 37, piso 4

1050 Lisboa

disputatio@mail.telepac.pt


  
Ficha do Artigo
Imprimir Abrir como PDF

Autoria:

Desidério Murcho

Desidério Murcho

Partilhar nas redes sociais:

|


Publicidade


Voltar ao Topo