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Urbano Tavares Rodrigues ou o sonho em que vamos

Remonta aos anos de 1950 a estreia de Urbano Tavares Rodrigues na prosa ficcionista portuguesa e já quase se perdeu a conta aos muitíssimos títulos da sua bibliografia activa. Mas nos últimos anos essa ficção tem-se definido em livros de grande inquietação perante o amor e a morte, a vida e o desencanto, a angústia e alguma certa nocturnidade perante uma visão do mundo de desalento ou de lúcida consciência sobre o fim de todas as coisas. Porém, na importante obra do autor de Bastardos do Sol existe sempre lugar para uma certa surpresa literária, na fidelidade aos valores ideológicos que configuram uma parte substancial de uma obra que ocupa lugar de relevo na moderna literatura portuguesa.

Depois de Filipa Nesse Dia, Violeta e a Noite, e Deriva, publicados entre 1989 e 1993, Urbano Tavares Rodrigues aparece com este romance que, longe de ser uma derivação intencional no mesmo discurso literário, se reafirma como forma pessoalíssima de se não deixar silenciar e ser uma vez mais espelho de uma consciência que, sempre interveniente e actuante, nunca se mostra indiferente ou fica calada na passagem de tantos anos aos valores sociais do tempo que se vive e pelo sonho em que vamos, porque nestes seus últimos romances encontramos, naturalmente, um mesmo fio narrativo, como reflexo de um tempo de crise ou de balanço final, desejando transfigurar essa realidade que se aproxima do abismo ou ainda revela do mundo um lúcido desencanto de tudo valer a pena: daí que os eixos ficcionais da obra mais recente de Urbano Tavares Rodrigues avancem no desvendar dos caminhos da droga, do amor, do desencanto ou de alguma compassada ironia sobre os tempos mais próximos de nós, como acontecera nessa era cavaquista de má memória, com todo o cortejo de um 'capitalismo' popular (e deu no que deu) e disso se serve uma e outra vez para determinar as coordenadas sociais de um tempo tão próximo de nós, na desenfreada loucura bolsista, na ascensão social e profissional a qualquer preço, como acontece no caso de Honorato ou de Gilda, dois jornalistas e personagens centrais deste romance.

De facto, o autor de Os Insubmissos retoma o que é uma constante na sua narrativa ficcional, tanto nas novelas como nos seus diferentes romances: dentro de uma clara visão existencialista e humanista, o mundo procura ser entendido como consciência de si mesmo e são sempre os outros que, na sua grandeza ou pequenez humanas, se revelam como centro polarizador em redor de quem se tecem todas as histórias. E, nesse mundo de disformes ou desmultiplicadas 'máscaras' e 'rostos', personagens ou lugares, nos gestos quotidianos captados, descritos ou denunciados em face das realidades mais possíveis, num tempo que é ainda de 'insubmissão' ou de 'conspiração', a prosa ficcional de Urbano Tavares Rodrigues desagua numa persistente 'nocturnidade' que se compreende como o outro lado das coisas, da vida, das gentes, do mundo.

Sim, entre o amor e os interesses imediatos (como acontece na relação amorosa de Honorato e Gilda), ou na morte inesperada de Geraldo, à deriva por muitos lugares e sempre muita gente em redor, toda a obra de Urbano Tavares Rodrigues se espraia assim como um retrato denunciador de tantos problemas, em tempos difíceis e desencantados, mas nessa generosidade de saber, pelo sentido profundo e original da ficção literária, criar uma admirável galeria de retratos, cheia de tipos humanos ou ruínas físicas que sempre se evidenciam nos entrecruzados jogos de amor e ódio, fugas e lutas, mortes e prisões, alegrias e medos, trabalhos, canseiras e desgostos, como de novo acontece neste excelente romance que é O Ouro e o Sonho.

Mas sempre o amor e a morte se ergue e evidencia como constantes marcantes de a vida se levantar nesse interminável correr dos anos, no nítido jogo de interesses ou na evidente certeza de que vale mais ter do que ser, as personagens de Urbano Tavares Rodrigues, envoltas na sua prosa vibrátil e poética, faz-nos compreender a própria 'realidade' (e o sentido inevitável ou fugidio das histórias contadas ou reinventadas) não como simples retratação do real e antes como sobreposição e criação literária de uma outra realidade renovadora na sua perspectiva psicológica e sentimental, denunciadora de valores e ideias que de novo se retomam numa espécie de idêntico fresco romanesco ou 'viagem sentimental' tão presente nos últimos romances.

Por isso, a leitura deste romance consente afirmar que, pela dimensão humana e estética da sua prosa ficcionista, mas sobretudo pelo sentido dessa 'nocturnidade' absoluta que nunca deixa de a atravessar, a obra literária do autor de As Aves da Madrugada de livro a livro se consolida como das mais expressivas e criadoras da nossa actual ficção literária. E assim O Ouro e o Sonho é, de facto, mais uma pedra angular nesse edifício ficcionista que representa o conjunto da obra de Urbano Tavares Rodrigues - um escritor que não podemos considerar 'datado' ou devedor de um 'discurso' que já não serve nos tempos difíceis que se vivem ou, repetimos, pela ilusão do sonho em que vamos. Nada disso.

A superior arte de narrar e as situações que Urbano Tavares Rodrigues cria e retrata com o mesmo ímpeto criador desde há quarenta anos, afirmam-no, sem dúvida, como um dos escritores de maior prestígio que tem sido votado a um estranho silêncio. Não o merece, dizemos nós, e este último livro uma vez mais isso confirma.

Serafim Ferreira.


  
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Autoria:

Serafim Ferreira
Escritor e Crítico Literário, Lisboa. Colaborador do Jornal A Página da Educação.
Serafim Ferreira
Escritor e Crítico Literário, Lisboa. Colaborador do Jornal A Página da Educação.

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