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Ereira ou a memória de Afonso Duarte

Muitos são os poetas que, em Portugal, viveram e deixaram o seu canto espalhado no caminho sem que outros aí apareçam para o erguer por outras pontes de eternidade. Por isso, Afonso Duarte (1884-1958) não foge à regra ou não escapa a essa espécie de 'maldição' bem nossa que teima em cair sobre alguns poetas de primeira grandeza e não vencem ou não colhem a atenção dos críticos e dos leitores: os primeiros, andam mais interessados (e preocupados) com os poetas de vários quadrantes, mas que são notícia em suplementos culturais de outras paragens (e eles sempre desejam não perder o comboio da actualidade literária, ou isso assim julgam); os segundos, porque, mesmo interessados em conhecer os seus poetas, não podem muitas vezes descobri-los no silêncio e ausência das livrarias.

Sabemos como o Poeta da Ereira passou discreto na vida ('Eu posso lá morrer, terra florida'), apesar do modo supliciado como a enfrentou, na solidão desesperada da sua terra ou dos poucos amigos que se sentaram à mesma mesa, na doença que cedo o atacou ou no jeito firme de mesmo assim nunca desistir, depois que fora compulsivamente afastado do ensino, sob a ditadura salazarista, em 1932, na altura em que era professor da Escola Normal Primária de Coimbra.

Claro, eram outros os tempos, eram outras as musas que andavam no caminho do autor de Cancioneiro das Pedras (1912). Mas nem por isso deixou de teimar e resistir na sua afirmação e condição de Poeta, mesmo na paraplegia que gravemente o afligiu e não mais o abandonaria até à morte. E da (sua) morte nos falaria depois Carlos de Oliveira, seu garantido e dedicado companheiro desde os tempos de Coimbra: 'O enterro vai por uma ruela barrancosa, cheia de estrume, entre currais e sebes. (...) Os muros do cemitério, dessa brancura morta que só a cal tem, alvejam lá no fundo. Assim caminha Afonso Duarte,vagarosamente, acompanhado por crianças, camponeses, alguns amigos, sol e flores, para os seus sete palmos de terra'. Era um dia de Março, e parece que não chovia, quando Afonso Duarte ficou enterrado há quarenta anos no cemitério da sua Ereira/Guernesey dorida, escutando as palavras em jeito de despedida de Miguel Torga: 'Resta-nos a recordação do que foste e o respeito pelos versos que escreveste. E dela e deles tiraremos o lenitivo possível. Mas tínhamo-nos acostumado à eternidade da tua presença'.

Há muito tempo que nos comovemos com a suavidade da sua poesia descarnada de sentimentalismo, presa ao húmus da vida, visão humanizada de ser um elo profundo entre os longes crepusculares da Vida e da Morte, ainda e sempre na relembrada sombra de Cesário:

Lusíadas do povo, ando a escrevê-los,

Vereis então como era outra sua sorte,

Já fiados que tenho os meus novelos,

Se a dobadoira não fiar a morte...

Mas, na expressão formal de ser 'antigo' e 'moderno', a par de uma magia secreta das palavras ou das lápides com que soube enfeitar o seu próprio estro, a poética de Afonso Duarte desdobra-se sempre entre o Amor, a Vida e a Morte, numa transmutação de valores presos ao sentir de um 'cancioneiro popular' bem enraizado na nossa tradição oral, escapando aos 'esoterismos' em moda no tempo dos seus primeiros livros. Porque nos acordes melodiosos dessa Guernesey dorida, a sua Ereira florida, terra de camponeses e pescadores a que sempre regressava em horas de desencanto ('Se não estou em Coimbra, estou na Ereira', costumava ele dizer), ligado visceralmente à terra em que nascera e crescera entre frutos e flores, à sombra da grande casa rural herdada de seu Pai, sempre se exprime em plenitude essa visão mágica de que fala Carlos de Oliveira, na conformada presença da morte que está próxima e ainda no desalento final de nada ter para dar:

Já não tenho que dar

Senão velhice e doença:

Sou como um cão lavrado

Ou única presença

No meu telhado, o vento.

Sou o ser que não morre

Só porque existe a Morte.

E, ainda na releitura do Canto de Babilónia (1950), ressurge por aí uma certa magia das palavras e nessa condição de ser poeta de outros cantos, rapsódias ou poemas líricos, nas 'lápides' e 'ossadas' que perpassam como marcos inscritos no seu caminho de Poeta em horas de sol-posto, a poesia crepuscular de Afonso Duarte, sobretudo pela visão panteísta do mundo e da vida, entre a Luz e as Trevas, entre a Carne e o Espírito, entre a Vida, o Amor e a Morte, ergue-se no instante de retomar o mesmo ininterrupto diálogo, por essa presença sentida de assim sempre nos falar:

O além da vida me tem morto,

Não a morte:

Um além que é amanhecer na noite sem fim

Dos dias sofridos,

Dos dias sem manhã nem tarde,

Porque foram de exílio, de desterro.

Ou pelos versos doridos deste canto de amor e morte:

Não sei donde vem o vento,

Se a morte me dá sinais,

No rio do esquecimento

Cada vez me lembro mais.

Mas, na impressiva sensação de o saber bem próximo desse refúgio que fora a amada Ereira e as suas gentes (pescadores, oleiros, cavadores), se pode compreender como o povo no fundo da própria e humilde condição se ergue em sinceridade e estala na voz das origens em pastorais e elegias de um claro entendimento:

Ilha da Ereira, ó Guernesey dorida,

Onde me exilo a este sol de inverno,

Que irá no meu País, que irá na Vida?

Na distância cruzada de muitos outros passos e de amigos que de perto conviveram com Afonso Duarte nos cafés ou na sua casa de Coimbra, na alta da cidade à beira do Mondego, demorado é ainda esse tempo de fractura e de protesto entre o sonho e a saudade, nos silêncios e palavras de outras vozes, presença e ausência de quem por ali andou e para sempre já partiu. Mas, nessa lenta quietude dos anos, Afonso Duarte ainda proclama:

E cá mesmo no extremo ocidental

Duma Europa em farrapos, eu

Quero ser europeu: Quero ser europeu

Num canto qualquer de Portugal.

E, na recordação viva do ambiente sentido e respirado nesses tempos alvoroçantes do 'neo-realismo' e dos muitos poemas espalhados pelo Novo Cancioneiro, sabemos como o Poeta de Ossadas permanece bem perto das águas remansosas do preguiçoso Mondego e na tranquilidade da velhice nos lembra estes versos que um dia pudera ler a alguns amigos mais fiéis em redor da mesa do 'Arcádia' ou da 'Central':

Erros meus a que chamarei virtude,

Por bem vos quero, e morro despedido

Sem amor, sem saúde, o chão perdido,

Erros meus a que chamarei virtude.

Mas na releitura da sua obra poética, sentimos ainda saudades de não ter andado perto do Poeta da Ereira hoje tão esquecido e ouvi-lo protestar, quase em jeito de epitáfio final:

Não sou um velho vencido!

Mesmo à beira da morte

Quero erguer o braço forte

Da razão de ter vivido.

Porém, na atenção que deram à poesia de Afonso Duarte, sobretudo Carlos de Oliveira e João José Cochofel, neste instante de repassada memória pelos versos em que confluem as vozes e os passos de outros poetas, talvez importe sublinhar assim as linhas essenciais de um trajecto que se desdobra em planos nem sempre paralelos, revisitando o Poeta na sua Ereira sepultado, próximo da intimidade desse rio Velho como o tempo que continua a correr para as serenas águas do Mondego como Camões o soube cantar, lá no alto o castelo de Montemor resplandecente na paisagem e guardião vigilante da memória de quem por estas paragens se cruza em idêntico itinerário de ausência e de saudade - Fernão Mendes Pinto ou Jorge de Montemor. E, na evocação dessas águas, sombras e lugares, sentir como renasce pelos fios do tempo a voz e a grandeza de Afonso Duarte na sua Ereira ressuscitado ao sol-nado das horas e dos dias. E por isso repetimos que é urgente ler, reler e compreender o Poeta de Ossadas. Estão a ouvir-me?

Serafim Ferreira


  
Ficha do Artigo
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Autoria:

Serafim Ferreira
Escritor e Crítico Literário, Lisboa. Colaborador do Jornal A Página da Educação.
Serafim Ferreira
Escritor e Crítico Literário, Lisboa. Colaborador do Jornal A Página da Educação.

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