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O que nos faz ser felizes é a aceitação de uma identidade plural

Mia Couto é António Emílio Leite Couto, nascido na Beira, Moçambique, em julho de 1955. Escritor, jornalista, professor e biólogo: paixões que se complementam. Paixões como as que sente por África e Moçambique, as muitas Áfricas e os muitos Moçambiques que poucos conhecem, por se ter criado um “retrato simplista e redutor do continente”. É a partir deste território que arrancam as suas histórias, cujo ponto comum é a busca de identidade, mas uma busca “que se sabe equivocada porque a ‘identidade’ é quase sempre uma miragem”, como contou à PÁGINA nesta entrevista realizada por e-mail.

Mia Couto é um dos maiores representantes da Língua Portuguesa, autor traduzido em várias línguas e entre os muitos prémios e distinções contam-se o Prémio Camões e o Prémio Internacional Neustadt de Literatura, que lhe foram atribuídos em 2013. Para trás, ficam inúmeros reconhecimentos, entre os quais a nomeação do livro “Terra Sonâmbula” como um dos doze melhores livros africanos do século XX. “Foi o único livro meu que me doeu escrever”, revelou. Ao longo das próximas páginas, Mia Couto fala da situação difícil de Moçambique, da Língua Portuguesa, do seu percurso literário, do que o inspira… “A infinita briga entre sermos um só e sermos plurais e cheios de potencialidades para a alteridade”, um conflito presente em cada um de nós, portadores de uma multiplicidade de histórias. “O importante não é tanto escrever mas criar histórias. Essa capacidade faz-nos mais humanos, mais felizes, mais coletivos.”

Ao longo da sua vida literária, recebeu muitos prémios – em 2013 foram-lhe atribuídos o Prémio Camões e o Prémio Internacional Neustadt de Literatura. Qual a importância destes reconhecimentos?

Quem escreve é sempre movido por uma certa apelação: escrevemos para que gostem de nós. Contudo, essa carência, no meu caso, não passa pelo reconhecimento formal. Passa pelos amigos.
Esses amigos, que são sempre poucos, são o prémio. No resto, o único fim que busco é o reconhecimento de mim mesmo, reconhecimento no sentido de me descobrir. Os outros prémios acontecem por acaso. Tendo dito tudo isto, a verdade é a seguinte: não sendo buscados, todos os prémios atuam como estímulo, e quanto menos ansiados mais eles podem ter valor. Mas eles pouco alteram no trajeto do escritor. O que move o escritor é sempre outra coisa, e quase nunca ele sabe identificar exatamente o que é essa coisa.

Passam 30 anos desde a sua primeira publicação (“Raiz de Orvalho”) e tem obras publicadas em mais de 20 países. Como descreve o seu trajeto literário?

Procuro que esse trajeto seja tudo menos uma carreira. O escritor não tem carreira na medida em que ele se quer guardar como uma criatura aberta a espantos e surpresas. Ele precisa conservar, assim, uma boa dose de ignorância e de inexperiência. Para que a infância não fuja dele. A poeta brasileira Adélia Prado disse quando publicou o seu primeiro livro: Eu publiquei um livro e, meu Deus, não perdi a poesia. Ela estava a falar dessa espécie de inocência que nos leva a ter o mundo como uma infinita caixa de surpresas.

Escreve poesia, romances, contos e crónicas. Tem preferência por algum tipo de escrita ou os “estilos” complementam-se?

Para mim a fronteira é pouco clara. Começo com um novelo que é sempre tratado como uma sugestão poética. No momento seguinte, por razão que desconheço, eu sou capaz de olhar para o interior dessa semente. Como se uma certa transparência se revelasse.
Nessa altura, então, eu sei se dali vai germinar um verso, um conto ou algo mais extenso. Mas, no fundo, é sempre poesia.

Disse numa entrevista que raramente se pode dizer que um livro nasce de uma ideia só, mas de várias ideias que às vezes não passam de “pensamentos mal formulados” ou “sentimentos cruzados”. O que o inspira?

A vida, ou melhor, as vidas que disputam uma única criatura. É isso que me inspira: a infinita briga entre sermos um só e sermos plurais e cheios de potencialidades para a alteridade. Esse conflito está presente em cada pessoa, seja ela escritora ou não. Se quisermos, se tirarmos prazer nisso, nós somos todos capazes de surpreender essa multiplicidade de histórias que há em cada um de nós. O importante não é tanto escrever mas criar histórias. Essa capacidade faz-nos mais humanos, mais felizes, mais coletivos.

Como descreve o seu processo de escrita? Prefere refugiar-se?

Há um primeiro momento que nasce do caos, da ausência de medo em me deixar dissolver numa história, numa ideia, numa pessoa.
Depois, é que se segue o momento solitário, em que qualquer coisa engravida dentro de nós. O essencial é uma relação com o tempo, de modo a que sejamos soberanos, num certo momento do nosso quotidiano. Não precisamos de mais tempo. Precisamos de um tempo que seja nosso. É nesse tempo meu que fico em sintonia com as vozes que me ditam as histórias.

É uma referência da literatura de expressão portuguesa, mas existem diferenças “literárias” entre os países irmãos. Há características próprias da literatura moçambicana?

Não sei. Não é um assunto que me ocupe muito. Interessa-me sim que haja muito moçambicano a escrever, com variados estilos e correntes literárias. Só depois dessa profusão de gente a produzir e a debater a sua produção é que poderemos falar de literatura moçambicana. Para ser “moçambicana” no singular, a nossa literatura deve ser capaz de albergar um mosaico de identidades, línguas e culturas. Somos uma nação de várias nações.

“Terra Sonâmbula” é considerado um dos doze melhores livros africanos do século XX. Qual o significado desta obra para si?

Próximas escritas. Mia Couto não gosta muito da palavra “histórico”, mas é o que se pode dizer de um novo romance que tem em mãos: aborda a mitologia do Império de Gaza (Moçambique) e questiona a personagem do imperador Ngungunhana. De momento, esse trabalho está interrompido para escrever um capítulo de homenagem a José Saramago. Mas, mal possa, vai regressar ao seu novo romance. O entusiasmo é muito: “Espero que me surpreenda a mim próprio!”
Foi o único livro meu que me doeu escrever. Estávamos no décimo sexto ano da Guerra Civil, eu tinha adoecido de um labirinto de solidão, sofria da total ausência de esperança. Acreditava que não seria possível escrever sobre a Guerra enquanto a Guerra durasse.
Mas o livro sucedeu como o respirar de um afogado, uma espécie de resistência interior contra a desumanização que toda a Guerra sugere. Não havia noite que eu não fosse visitado por amigos e colegas meus que morreram no conflito. Eu não estava apenas a escrever. Eu estava em pleno ritual de resistência que, por lado, pretendia lembrar os que se extinguiram e, por outro, pretendia o esquecimento absoluto, a anulação de um tempo que nos anulou.

Nas suas obras aborda muito a mística africana, as histórias e as crenças. Considera ser este o ponto comum entre os seus trabalhos?

Acho que não. Um ponto que me parece comum é a busca de identidade, Mas uma busca que se sabe equivocada porque a “identidade” é quase sempre uma miragem. E o drama é que vivemos essa virtualidade como uma realidade. E mais do que isso como uma normalidade. O que nos faz sermos felizes é a aceitação de uma identidade plural, a autorização para viajarmos entre esse arquipélago de seres.

O medo rouba-nos de nós mesmos

O mundo tem a ideia certa do que é África, em especial Moçambique?

Não. Mas nem África tem uma ideia que possa ser considerada como “certa”. E não pode haver, felizmente, essa ideia. Há muitas Áfricas, há muitos Moçambiques. O que acontece é que se criou um retrato simplista e redutor do continente. Tendo sido maioritariamente criado fora de África, esse estereótipo passou a beneficiar algumas elites africanas que ganham vantagem dessa dimensão folclórica, vitimista e falsamente homogénea. África é um berço, o primeiro dos berços de gente e culturas. É, por isso, do mais plural dos continentes.

Como descreve o seu país?

Como descrever algo que, sendo como um livro, não pode ser descrito? Como qualquer terra, Moçambique é objeto de paixão, não pode ser descrito. Só pode ser revelado. Nascer assim de um país que é mais novo que eu mesmo é um enorme privilégio. Muitos dos materiais da escrita foram-me entregues por esta nação que anda por caminhos de ficção a escrever o seu nome e a produzir a sua própria narrativa.

Moçambique está a atravessar uma situação complicada. Como está a viver este momento difícil?

Com alguma angústia. Mas devo confessar que tenho algum gosto em me sentir perdido. Esse sentimento de desnorte obriga a buscar caminhos e repensarmos caminhos e repensarmo-nos como caminhantes.
Este momento, porém, oferece essa indefinição mas de um modo doloroso. Pela primeira vez, dói-me não saber.

Sobre a situação que Moçambique atravessa, falou de uma “força sem rosto e sem nome” que põe em causa a credibilidade do país. Que força é esta?

São grupos criminosos que se infiltraram na estrutura do Estado.
E não lhe sei dizer mais.

“De cada vez que um moçambicano é raptado é Moçambique inteiro que é raptado”, disse na Gala da STV. Acha que Moçambique está “raptado” dos seus ideais de liberdade?

Não. Acho mesmo que Moçambique ainda é uma rara nação do Terceiro Mundo que se pode orgulhar da liberdade de pensamento e de expressão que foi capaz de conquistar. O que eu disse nessa intervenção pública traduz essa mesma liberdade. O que estava em causa, naquele momento, era um estranho alheamento das autoridades para um clima de medo que se instalou nas cidades.
Esse medo roubava-nos de nós mesmos. E isso é a mais grave afronta à liberdade. Mas a verdade é que eu falei sem receio, e esse clima de permissividade é uma conquista demasiado valiosa para não ser aqui exaltada.

Vive muito a sua pátria e chegou mesmo a lutar pela Independência de Moçambique. Esse facto influencia a sua escrita?

Sem dúvida. Tenho uma enorme vaidade nessa experiência, nessa entrega a uma causa que era de todos moçambicanos. Eu sentia que eu estava apostando a minha vida na mesma página onde tantos outros se inventavam como pessoas e onde um país se descobria a si mesmo. Esse percurso fez-me conhecer gente, cruzar de destino com essa gente, trocar esperanças e ganhar intimidade com aquilo que, em condição de rotina, não está disponível.

O importante para nos aproximarmos é a vontade de sermos família

O Português é uma das línguas mais faladas do mundo. Esse facto é importante para a divulgação da literatura escrita na língua de Camões?

É importante, mas duvido que possa bastar. Se nós, os lusofalantes, não tivermos nada de novo a dizer aos outros pouco importa que sejamos muitos. A nossa comunidade de países tem vivências originais, que nascem da sua própria experiência histórica.
Em vez de querermos ser como os outros, em vez de nos apressarmos a copiar quem escolhemos como modelo, o melhor seria apostar na nossa própria história peculiar.
A história das nossas relações e o modo como produzimos mestiçagens pode ser importante como contribuição civilizacional para um tempo em que se fala muito de tolerância mas se vive pouco essa habilidade de nos dissolvermos nos outros.

O que pensa do Acordo Ortográfico? Considera que é importante para a aproximação cultural entre os países de Língua Portuguesa?

Não. O que é importante para nos aproximarmos é a vontade de sermos família.
Uma família com diferenças mas que entende o que é importante produzir no mundo de hoje e não na celebração de glórias e desgraças passadas. Eu não entendi (e por isso não concordei) os argumentos que se usaram para fundamentar a necessidade do acordo. Sempre li livros brasileiros sem que isso tivesse qualquer problema. Pelo contrário, a existência de uma grafia com alguma diversidade me ajudou a descobrir fascínio nos textos dos brasileiros. O que falta para ser uma família mais próxima e mais produtiva não é uma qualquer grafia comum mas é a vontade política, a honestidade para identificarmos aquilo que nos faz estar dispersos e afastados.

O que espera do futuro da Língua Portuguesa?

Que nos ajude a ter futuro e dignidade num mundo que tende a falar uma língua única.

Qual a sua relação com Portugal?

Portugal, para mim, são os meus pais, familiares que redescubro, amigos que me fazem estar mais vivo. Até à minha adolescência eu mantinha uma ideia muito vaga do território português e a imagem que tinha de Portugal nascia das histórias que os meus pais me contavam, e eu quando finalmente desembarquei em solo português percebi que já escutava Portugal antes mesmo de qualquer outra relação de sensibilidade.
Depois, deixei-me fascinar pela diversidade de paisagens e de gentes que um território tão pequeno foi capaz de criar. Gosto de perceber o quanto a Cultura e a Língua Portuguesa foram não apenas um ponto de partida mas de chegada de outras gentes e de outros povos.

Jornalista, professor, biólogo e escritor. Sente pertencer mais a uma profissão do que outra?

Nenhuma delas chega a ser uma profissão. São paixões. E todas elas se complementam como se fossem apenas facetas de uma mesma entidade. Digo o que já disse Anton Tchekov quando o questionavam sobre a sua ambivalência entre ser escritor e médico. Ele respondia: Não há traição, mulher e amante são a mesma pessoa.

Que projetos tem para o futuro?

Eu sou muito caseiro, os meus projetos são muito domésticos: queria poder usufruir com paz da minha vida familiar e dos meus amigos. E poder trocar histórias com filhos e netos. Quero tanto isto que abdico com facilidade de tudo o resto que se acredita estar na mira de um escritor: publicar e ser reconhecido.

ATENEU HOMENAGEOU MIA COUTO

“Muito feliz”. Assim estava Mia Couto no dia em que o Ateneu Comercial do Porto promo-51 veu uma homenagem ao autor moçambicano. Foi a 30 de novembro. Numa visita relâmpago ao Porto, cidade de seu pai, Mia Couto teve a oportunidade de estar com alguns familiares e amigos. Por isso, esta homenagem teve também um significado especial. “Sobretudo porque é a terra do meu pai”, sublinhou. “É uma espécie de retorno, digamos assim. É quase como se fosse um ciclo que se fecha, sem que eu tivesse forçado a coisa alguma. Portanto, é como se fosse alguma força que, de uma maneira quase secreta, me convoca para este lugar.”
Acompanhado por Jorge Barreto Xavier, secretário de Estado da Cultura, e por Hélio Loureiro, presidente da direção do Ateneu Comercial do Porto, Mia Couto regressou por momentos a “casa” na inauguração da exposição sobre o Parque Nacional da Gorongosa. Antes disso, foi possível ver a primeira edição de “Os Lusíadas”, de Luís Vaz de Camões. Ao escritor, que é atualmente um dos maiores representantes da Língua Portuguesa, o Ateneu Comercial do Porto atribuiu o grau de Sócio Honorário e medalha de Honra e Mérito grau de ouro.
“É um dos grandes escritores da Língua Portuguesa. O Ateneu Comercial do Porto sempre teve esta vontade de homenagear em vida os nossos escritores, os nossos poetas, e esta é a primeira vez que nós homenageamos um escritor que não é português mas que escreve em Língua Portuguesa. Daí esta cerimónia de mostragem da primeira edição de ‘Os Lusíadas’, que temos na nossa sala de leitura, e de uma exposição sobre o Gorongosa em homenagem ao Mia Couto. Para que as pessoas também entendam o que é hoje o novo Moçambique e esta ligação que Portugal tem com Moçambique, não só pela língua para também pelo afeto e pelo coração”, explicou Hélio Loureiro, mostrando também orgulho pelo facto de o escritor ser descendente de “tripeiros”.
Num futuro próximo, o Ateneu Comercial do Porto pretende fazer outras homenagens, mas também concertos de vários estilos musicais e momentos de poesia, “sempre valorizando esta lusofonia, a portugalidade e sabendo que estamos a fazer um encontro, ou um reencontro, do Ateneu Comercial do Porto com a população da cidade”.

Hélio Loureiro, reconhecido chef, é o atual presidente da instituição, que conta já com 144 anos de existência. E como se junta a gastronomia a este cargo de carácter associativo? “O que se junta é uma vontade de querer servir. Tinha 16 anos quando escolhi um lema para a minha vida: ‘quem não vive para servir, não serve para viver’. Estou sempre ao serviço do meu país e da minha cidade”, frisou.

 

Mia Couto respondeu por escrito às questões colocadas por Maria João Leite


  
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