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As histórias estão nos extremos, a moderação é a vidinha normal

A voz da ‘diva eterna’ Billie Holiday ecoava nas colunas do café Pátio quando Valter Hugo Mãe – agora com maiúsculas – chegou para a entrevista com a PÁGINA.
É este o lugar, “único” em Vila do Conde, onde se sente mais à vontade e foi lá – nesse lugar “especial”, que frequenta há 16 anos – que falámos do percurso literário do escritor, do processo de escrita, das minúsculas e das maiúsculas, dos livros e da música, das mulheres da sua vida, da vida...
Nascido na cidade angolana de Saurimo, em 1971, Valter Hugo Mãe é autor de textos poéticos, para teatro e para música, de livros para a infância e de cinco romances: «o nosso reino» (2004), «o remorso de baltazar serapião» (2006) – vencedor do Prémio José Saramago –, «o apocalipse dos trabalhadores» (2008), «a máquina de fazer espanhóis» (2010) e «O filho de mil homens» (2011). Em setembro vai lançar uma nova obra, de teor biográfico.
Valter Hugo Mãe é um homem de sensibilidades, que se emociona e que gosta de situações extremas, porque é nessas extremidades, nas tragédias, que a vida acontece. Comecemos pela escrita.

Primeiro a poesia, depois os romances. Como é que se tornou escritor?

Acho que sempre fui, de alguma forma… Não consigo entender isto sem ser pela minha natureza ou pela natureza das coisas. De algum modo, desde muito miúdo, tinha algum fascínio pelas palavras e procurava muito as palavras, tentava entender que palavra podia significar especificamente alguma coisa. E acho que já era um modo de escrever ou já era um modo de transformar o mundo em texto. E tinha nos textos, no fundo, uma meditação fundamental ou um modo de pensar que é o meu modo de pensar.

Como define esse modo de pensar?

É uma coisa expressiva, que necessita de expressão. Ou seja, muitas vezes o normal é que pensemos coisas de um modo mais ou menos abstrato, porque não precisamos de o positivar ou de o explicar a alguém. Mas eu tenho a tendência de o explicar ao menos a mim mesmo, e por isso, preciso de encontrar uma fórmula expressiva, de encontrar um modo de positivar as coisas mais abstratas e mais difíceis de dizer.
Acho que é isso – um pensamento que precisa de expressão.

Licenciou-se em Direito e mais tarde fez uma pós-graduação em Literatura Portuguesa Moderna e Contemporânea. Para essa forma de expressão, o Direito foi útil?

Foi, muito. Porque, no fundo, o Direito é uma disciplina discursiva. No Direito, o que está em causa é saber como vamos exatamente positivar um determinado pensamento que queremos que seja tão correto, tão universal, que reja todos os homens, digamos; como vamos positivá-lo e como vamos fazer a sua leitura. Por isso, o Direito é todo um estudo, digamos assim, de como falar e de como ler. Se fosse possível, nesta dimensão utópica de andar à procura de palavras, de encontrar as palavras perfeitas que definissem em absoluto um determinado sentimento, uma determinada vontade, o Direito nunca deixaria dúvidas, nunca levantaria dúvidas, não eram precisos advogados, tribunais..., não era preciso nada. Toda a existência do sistema judiciário acaba por ser a prova de que falar, ler e escrever não é uma ciência concreta e deixa sempre margem para o erro. E estudar isso é muito interessante para um escritor. Se calhar, não é por acaso que muitos escritores são licenciados em Direito ou foram advogados.

Têm o dom da palavra?

Não sei se é dom da palavra, mas, de facto, o Direito é uma forma de estudar o que é isso de dizer o que se quer dizer com o máximo rigor possível.

Mas nunca se imaginou num tribunal, de fato e gravata?

Eu cheguei a ser advogado, fui advogado estagiário e tive um ano e meio de experiência. É claro que os meus casos eram quase todos ações oficiosas que a Ordem dos Advogados me obrigava a defender, e quase só divórcios. Mas cheguei a estar em tribunal e a ter de falar, coisa que na altura me deixava profundamente nervoso. Mas eu argumentava bem.
Inclusive, a expectativa do meu patrono era que eu daria um bom advogado, porque tecnicamente eu era preguiçoso, tinha muita preguiça para fazer as peças processuais, mas tinha um sentido jurídico muito apurado e encontrava sempre uma razão, estabelecia lógicas que acabavam por favorecer quem estivesse a defender.

Como é o processo de escrita? Sei que «a máquina de fazer espanhóis» foi à base de latas de atum e de sopa. É sempre assim?

É sempre o mesmo. No que diz respeito ao momento da escrita, eu escrevo por intensificação, é um pouco parecido com o estar obstinado com alguma coisa, e não posso distrair-me. Procuro defender-me em relação a todas as distrações e, por isso, tento desaparecer, fechar-me, ficar o mais sozinho possível. E escrevo muitas horas seguidas. E então, eu não sei propriamente cozinhar, só sei fazer sopa, mas também não faço muitas vezes – devo fazer duas por ano… Eu adoro atum em lata, por isso, nem é propriamente um sacrifício. Mas também compro umas latas de frutas, e muito pão e queijo. E é o que como durante dias, durante muitos dias, o que significa que quando estou em processo de escrita emagreço sempre. Também me dá para comer muitas laranjas, que é uma coisa que não como muito durante o ano inteiro, mas em processo de escrita acho que me fazem bem à saúde. Faço assim, menosprezo um bocado a alimentação, mas depois compenso com esses placebos, talvez…

E como método de trabalho, escreve primeiro num bloco, em papel?

Primeiro, sempre num bloco. Começo invariavelmente por tomar notas. Tenho sempre um caderno específico para cada romance, que me pode acompanhar durante dois, três anos, onde vou anotando todas as pequenas e grandes ideias. Às vezes escrevo uma pequena sequência, um parágrafo inteiro, uma página inteira.

Então não se senta em frente ao computador e começa a “despejar”…

Não. Primeiro há um retrato, digamos que breve, que é traçado pelas notas. Quando o romance começa, eu não sei factualmente o que ele vai ser, como é que as personagens vão resultar ou em que situações é que vão estar metidas.
Mas sei que personagens são, conheço o perfil mental de cada personagem principal. Depois aparecem sempre muitas figuras novas, figuras que não existiam, que eu não conhecia e que o romance inventa no momento da escrita. Mas as personagens principais, normalmente, tenho-as muito bem definidas, só não sei o que lhes vai acontecer.

É um homem que viaja muito, que gosta de viajar. O que espera encontrar nos destinos: paz, inspiração ou apenas desligar de tudo?

Tudo serve, no fundo. Quando viajo, fico atento, porque é verdade que, em lugares diferentes, as mesmas coisas podem ser vistas de um modo diferente. E essa leitura pode ser também mais disfórica, digamos, mais triste, o que faz com que alguns lugares sejam mais tristes. Mas também pode ser uma leitura mais bonita, diria mais rica, em que a forma como os assuntos são abordados pode ter um conteúdo mais humano, mais próximo, mais harmonioso. Estive agora no Brasil, e aquilo que acontece na Amazónia, com o rio que sobe 15 metros durante o período das chuvas, o modo como as árvores ficam submersas – e são árvores que estão habituadas a viver assim, seis meses fora e seis meses dentro de água – e a maneira como os barcos podem passar nas copas das árvores – no fundo, subitamente, durante seis meses, os barcos andam no lugar dos pássaros –, é uma forma de ver um rio completamente diferente da nossa. Os nossos rios não deixam de ser encantadores, mas uma viagem ao Rio Negro acaba por sublinhar a magnificência dos rios. E quando calhar de escrever alguma coisa que por algum motivo me sugira a imagem do rio, eu sei que há em mim uma capacidade de especificar um rio de um modo mais incrível.

Traz outras visões…

É um superlativo. De facto, há lugares que são o superlativo das coisas, até de algumas atitudes; lugares incrivelmente organizados, porque as pessoas são muito organizadas, como a Islândia, que me fascina.

E que também visitou...

Estive lá e vou voltar. Enfim, tudo isto nos ensina. A viagem tem essa coisa de nos medir e de nos explicar que não somos tão maus como pensamos, que talvez sejamos melhores do que estamos à espera e que, no fundo, em nenhum lugar existe a perfeição. O que existe são tendências; cada povo define a sua tendência para o que defende de melhor e de pior.

Em «O filho de mil homens», penso que foi durante uma viagem que pensou em dar um final feliz à personagem principal. Porque salvou o Crisóstomo da desgraça?

O Crisóstomo é uma pessoa, uma personagem tão bonita, que eu teria de ser muito cruel se o desgraçasse. Acho que foi a primeira vez que aconteceu inventar uma personagem perante a qual fiquei deslumbrado, assim como esmagado pela sua conduta, pela sua ética empírica. Toda a energia dele propendia para uma benignidade tal que não consegui destruí-lo – acho que quando o inventei, imediatamente, ao fim do primeiro capítulo, fiz um pacto com ele e disse-lhe que o defenderia a todo o custo. E foi o que fiz no livro.

É um livro que fala da forma como se veem as coisas…

Acho que os meus livros têm uma vontade muito grande de ensinar, desde logo a mim próprio, modos de ser melhor pessoa.
E «O filho de mil homens» é um pouco o cúmulo dessa vontade. Acho que é todo um livro que pretende ensinar-me a mim, e se calhar, por arrasto, aos leitores, como na verdade é tão fácil sermos um pouco melhores.

É o seu livro favorito?

Não. Eu gosto dos meus livros todos de uma forma diferente.
Eles são muito diferentes e sinto-os de uma forma muito diferente. São escritos em tempos diversos e todos acabam por ser uma certa escola para mim. Este é o que me sensibiliza mais nesse sentido do humano. É claro que as pessoas podem ler o livro e não gostar em termos literários, achar que não tem piada, mas acho que alguém que leia a história do Crisóstomo e não se sensibilize com a energia benigna dele, tem de ser uma pessoa que está estragada para a vida.
Sinto que é um livro especial de entre todos os que escrevi, porque me é tão sensível, tão delicado… Pode ser criticado em termos literários, mas a personagem é uma fantasia tão humana que não vejo como possa ser desprezada.

À partida, todos os autores colocam sempre um pouco de si nos livros que escrevem.

Menos eu… [risos]

Qual é o livro que tem mais do Valter Hugo Mãe? Em qual sente que mais se entregou?

Sem dúvida nenhuma, o primeiro romance, «o nosso reino».
Conta a história de uma criança de oito anos que queria que Deus se expressasse, que Deus falasse, e eu era assim quando era miúdo. Sei que isso aconteceu porque, como era o primeiro romance, eu ainda não sabia muito bem como defender-me dos livros, como esconder-me, e então escondi-me pouco. E o livro acaba por mostrar muito do que sou, do que eu era. Mesmo essa coisa disfórica, essa tendência para achar que a vida é uma coisa terrível, vem muito desse livro, está muito nesse livro.

E em mais nenhum?

Os livros são pontuados, digamos assim, por pequenas aparições. «a máquina de fazer espanhóis», porque o meu pai faleceu e eu achava que talvez me ajudasse a compensar essa perda, que fosse bom para mim inventar a vida de um homem na terceira idade. «O filho de mil homens» começa com o Crisóstomo a dizer que gostaria de ter um filho e eu gostaria de ter um filho. O Crisóstomo chega aos 40 anos e eu cheguei aos 40. O livro foi lançado na minha festa de aniversário…

E até chegou a receber propostas…

Recebi muitas propostas para casamento e para treinos diversos.
E ainda vou recebendo. As pessoas vão lendo o livro, vão vendo as entrevistas, e à medida que vai andando, vai acontecendo... Esses dois livros têm essa ligação clara com pontos da minha vida, mas o que acontece é que, depois, factualmente, efetivamente, eles nunca coincidem com nada que me aconteça. Eles são ficções, pronto. São histórias. A verdade é que eu costumo dizer uma coisa que é mentira, que agora estou a descobrir que é mentira. Eu sempre achei que a minha vida não dava um livro, e então sempre disse: a minha vida não dá um livro, a minha vida é muito aborrecida, a vida de um escritor, basicamente, é ficar parado numa mesa, a escrever, não é? Enfim… Claro que agora convidam-nos para viagens e acabamos por ver coisas muito interessantes, mas é quase sempre numa perspetiva muito turística. Vemos coisas interessantes, mas talvez não sejamos os melhores para relatar especificamente essas coisas.
Precisaria de uma convivência um pouco mais naturalizada.
Agora, a verdade é que em setembro vai sair um livro que recolhe textos autobiográficos, de pendor biográfico, que passam muito pelas minhas crónicas, por outros textos que fui usando em festivais, testemunhos que me foram pedindo e outros que fui escrevendo, de episódios de que me lembrei e que fui querendo preservar. Por isso, em setembro, sai um livro e, efetivamente, a minha vida é o mote de tudo quanto lá está escrito. Eu que estava convencido que a minha era uma chatice… Mas, pronto, afinal também deu um livro.

Ia perguntar se já está a pensar no próximo...

Acaba por ser isso, sim. Não é um romance; é uma coisa que colige textos dispersos, que vai desde memórias da minha infância – talvez metade do livro – até ao texto que escrevi sobre Saramago, quando morreu.

A história da Festa Literária Internacional de Paraty…

Exatamente, o texto de Paraty ainda não foi publicado… Quer dizer, foi usado em alguns blogues, no Brasil – apanharam o texto e puseram-no em blogues –, mas eu nunca o publiquei, em Portugal nunca foi publicado. E há vários textos assim, textos que escrevi, por exemplo, para leitura nas Correntes d’Escritas e que as pessoas sempre me perguntam, porque adoravam reler, ler. Foi um pouco isso que motivou este livro. Depois, eu não quis que o livro fosse tão disperso assim e estou a tentar uma unificação, criando uma pequena autobiografia, digamos, que tenha um sentido lógico, consequente.

E este vai ser escrito com maiúsculas?

Sim, agora já estou estragado o suficiente. Já estou nas maiúsculas.

Disse, a propósito desta questão, não querer ficar “reduzido ao homem das minúsculas”. Foi isso que o fez mudar?

As pessoas comentavam entre elas: “então, leste algum livro do valter hugo mãe?”, “li, li”, “e então como é?”, “ah, escreve em minúsculas”, “mas era bom?”, “sim, sim, é escrito em minúsculas”, “mas é sobre o quê?”, “ah, é assim uma coisa escrita em minúsculas”… Era uma forma muito redutora de passar uma imagem dos meus livros, até porque as minúsculas, basicamente, existiam para não fazerem muito, era uma tentativa de a pontuação, de a ortografia, não influir demasiado, deixar tornar-se discreta. E de repente parecia que era a única coisa que muita gente conseguia encontrar para falar dos meus livros. Isso é muito redutor e muito frustrante. Por outro lado, o essencial, para mim, foi poder decidir ao fim daqueles quatro romances, que completam uma certa tetralogia, mudar ou não. E não mudar é uma coisa assustadora. Ainda que estejamos convictos do que fazemos, acho que fazer sempre a mesma coisa é assustador, é ainda mais redutor do que aquilo que as pessoas possam pensar de nós. É um bocado o que aconteceria se o Picasso tivesse ficado na fase azul, tivesse achado que a fase azul era uma coisa excelente e tivesse passado a vida toda a pintar naquela fase e não tivesse explorado rigorosamente mais nada. Eu tive a fase das minúsculas e agora quero possibilitar o aparecimento de outras fases, estar disponível para mudar.

Mas na poesia vai manter as minúsculas?

Na poesia mantenho, porque a poesia não precisa dessas coisas, a poesia é um território de limpeza pura, de pureza. Não consigo ver a minha poesia de outra forma e, por isso, os poucos poemas que tenho estão todos com as cabeças baixinhas.

ESTOU SEMPRE À PROCURA, PRECISO SEMPRE DE ESCREVER OUTRO LIVRO

Também escreve livros para a infância. Porquê? Qual é a mensagem que quer passar para as crianças?

Antes de ter livros para miúdos, fui a tantas escolas e falei com tantos miúdos, que sempre me perguntavam “por que não escreveu nada para nós?”, “por que não tem nada que nós possamos ler?”. Efetivamente, eu gostaria de ter, mas não me foi muito rápido chegar a um texto para os miúdos, porque começava a escrever e havia sempre qualquer coisa que fazia com que eu pesasse o universo, carregasse naquele universo. E tornava tudo tão dramático, que já não era adequado.
Quando desbloqueei isso, gostei muito. Para mim, a dificuldade de escrever para miúdos passa por um exercício de consciência muito grande, de saber o que posso veicular, o que é legítimo dizer aos miúdos como sendo uma coisa válida. Porque eu acho que muitos dos livros que compramos para as nossas crianças contêm ideologias perversas e coisas que lhes retiram a possibilidade de, elas próprias, decidirem em que acreditam e que vão manipulando o pensamento dos miúdos para os convencerem de uma determinada coisa. E isso é muito fácil. Dou sempre o exemplo de um livro em que peguei, já há uns anos, quando decidi “vou começar a ler livros para miúdos, deixa-me ver o que se escreve para miúdos”. E encontrei um livro que começava assim: A Maria durante a tarde faz bolos deliciosos com a mãe para quando o pai chegar do trabalho ter um doce, uma surpresa, ou não sei o quê… A vida daquela cachopa era passar os dias na cozinha com a mãe; o pai chegava, tirava os sapatos e comia refastelado, porque o pai trabalhava e a Maria e a mãe divertiam-se a cozinhar... Este livro é uma porcaria. Não é que a Maria não possa aprender a fazer bolos e não é que a mãe não possa fazer bolos, mas então talvez pudessem dizer a coisa metendo também o Manel ao barulho, e a mãe trabalhava e o pai não, estava à espera de um emprego…

Não sei, qualquer coisa que mostrasse que as miúdas não estão condenadas a ficar na cozinha.

Mas há valores que se passam, a questão da igualdade, o não preconceito…

Pois, isso é o que eu acho que devemos defender. Eu tenho muito cuidado. Muitos livros também dizem: O Joãozinho queria muito ter uma mota, pediu a Deus que lhe desse uma mota. Quer dizer… Deus pode até existir, mas não para toda a gente, e eu acho que os miúdos que são criados de outra forma, que têm outra consciência ou que são de outro credo, também têm o direito de ler livros sem estarem a ser instigados para uma coisa que o seu património familiar não quer.
Por isso, tem de ser uma coisa muito limpa, muito honesta, dentro de valores muito universais, que não levantem ambiguidades.
Acho que a amizade, a fraternidade, a lealdade, a capacidade de confiar em alguém, a perseverança, a generosidade – valores que são basilares – são a única coisa que nós podemos defender em livros para miúdos.

Também é um homem dos rabiscos. Fez ilustrações.

Fiz uns bonecos, mas não são propriamente obras de arte.
São uns bonecos tontos... Faço uns desenhos.

Mas tem livros com ilustrações suas.

Dois livros têm umas colagens, umas ilustrações minhas. São muito simples e feitas com recortes de cartolina. A ideia foi muito engraçada, porque os miúdos conseguem facilmente reproduzir e fazer aquilo. O que significa que eu fui a algumas escolas, levei cartolinas comigo e fiz aqueles pássaros, aqueles monstros. Fiz diante deles e eles perceberam como é que, de repente, se pode fazer um boneco e como é que, depois, a partir de uma coleção de bonecos, podemos inventar uma história. Em termos didáticos foi muito giro, mas as ilustrações são uma porcaria, não são grande coisa. [risos]

Qual é o escritor de referência?

Muitos… É difícil ter uma referência única: Herberto Hélder, Kafka, Drummond de Andrade, Clarice Lispector, Guimarães Rosa, Fernando Pessoa, Vergílio Ferreira, Saramago, Lobo Antunes, Stig Dagerman, Sharon Olds, Walt Whitman, Shakespeare… Lautréamont, que eu adoro... Muita poesia, de facto: Adília Lopes, Luís Miguel Nava, Al Berto, Henri Michaux… Acho que a minha família de autores, aqueles que me fascinam, são autores mal dispostos, ou azedos, ou muito tristes, ou muito violentos.

Um Mário de Sá-Carneiro, por exemplo…

Também. O Cesariny… Gosto dos trágicos, que podem ser muito violentos e muito tristes, ou muito sonhadores, mas que não deixam de acabar em tragédia.

É o drama que o atrai?

A tragédia, sim, a intensidade. Porque os autores que escrevem coisinhas medianas são chatos. As coisas têm de ser extremadas…

Para criar emoção?

Sim. Porque as histórias estão todas nos extremos. A mediação, a moderação, é a vidinha normal, é o dia a dia. Depois temos momentos fraturantes, que são os grandes momentos da história da nossa vida, porque o quotidianozinho resume-se em quase nada. Se a nossa vida estiver muito normalizada e nos perguntarem “então como é que vai a vida?”, a gente diz “mais ou menos” ou “normal”, “o que tens feito?”, “trabalhado”. Agora, se tiver acontecido uma coisa terrível, aí, a história da nossa vida não se resume com facilidade, porque é muito intenso.

José Saramago apelidou-o de tsunami. Sente-se um “tsunami” da literatura em Portugal?

Não. Acho que isso é uma generosidade dele. Eu compreendo essa imagem depois de ler os meus livros, e sobretudo «o remorso de baltazar serapião», que é muito violento e muito voraz, muito rápido. Eu tenho um pouco essa tendência para o texto muito rápido, com as coisas a sucederem-se de um modo acelerado. Os anos também vão passando, mas procuro nem pensar demasiado, para não ser esmagador.
Porque acho que para lidar com os elogios é preciso um certo cuidado, precisamos de fugir um pouco a isso. Tenho muita dificuldade em ficar deslumbrado com o que faço. Ou seja, fico deslumbrado com o escrever, mas o texto em si…
Durante algum tempo posso gostar muito, mas dificilmente me deslumbro ao ponto de achar que fiz a melhor coisa à face da terra; não consigo nem achar que fiz o melhor que consigo fazer, acho sempre que fui preguiçoso, que podia ter feito melhor, que tenho ali um erro insuportável que preciso de corrigir. E por isso estou sempre à procura, preciso sempre de escrever outro livro, porque nenhum é capaz de chegar àquele lugar mental da experiência – essa, sim, deslumbrante – de escrever.

Deixaria de escrever se encontrasse a fórmula perfeita?

Eventualmente. Se encontrasse o livro perfeito, provavelmente ficaria a pasmar diante dele, emudecido, não conseguiria dizer mais nada. Mas isso não acontece, nem vai acontecer.
Por isso, ponho sempre aquilo que faço muito em perspetiva, muito em causa. Não me adoro. Tenho muita dificuldade em gostar de mim nesse sentido. Aquilo que faço é só o melhor que pude fazer, mas num determinado momento, porque o tempo passa e eu fico outro e já só vejo erros, e as virtudes do texto passam-me um pouco ao lado.

TENTO NÃO FICAR RESPONSABILIZADO AO PONTO DE TER MEDO

Tem sido reconhecido e premiado. Recebeu o Prémio José Saramago pelo seu segundo livro, «o remorso de baltazar serapião». O que mudou desde então?

Mudou que eu agora já escrevi muitos livros, cinco romances. E chega um ponto, é verdade, que começa a ser difícil, ou mais difícil, a perceção do que posso trazer de novo a um livro. Ou seja, aquilo que teria para trazer de novo aos textos, à literatura, talvez já esteja denunciado nos livros que escrevi.

Houve uma responsabilização maior?

Sim, as pessoas responsabilizam-me, mas eu tento não ficar responsabilizado ao ponto de ter medo. Procuro levar a minha vida o mais naturalmente possível. Mas tem a ver com um processo mental, meu, de construção. Eu próprio sinto que dentro dos cinco livros que escrevi estará, talvez, a minha capacidade de originalidade inteira. Quer dizer, tudo quanto eu pude inventar de mais original já está inventado e agora sinto dificuldade em partir para novos livros, pensando “vou escrever sobre um determinado assunto de uma forma diferente, vou encontrar um outro modo de escrever”.
Isso é cada vez mais impossível. E é frustrante. Porque os escritores chegam a um ponto, em que têm o seu estilo, e o estilo é tão marcante que não conseguimos fugir dele. Isso é bom, porque nos define, nos distingue em relação a outros; mas também é mau, porque nos condiciona.

Mas há toda uma nova fase, até nas maiúsculas… Não poderá surgir daí um novo estilo?

Pode. E é o que eu quero.

Um estilo muito diferente do atual?

Não sei, porque eu vou ser sempre a pessoa que sou. O que eu quero é pensar numa abordagem a uma história que, de facto, seja distinta em relação aos outros livros.

Que surpreenda?

Que me surpreenda a mim.

Na Festa Literária de Paraty teve um auditório de duas mil pessoas a aplaudi-lo de pé. Emocionou o Brasil, e também ficou emocionado. Qual a importância desse momento?

Foi muito importante. Foi um momento breve, que poderia ter sido apenas agradável, mas foi mais do que agradável e criou o meu nome no Brasil. De um modo absolutamente retumbante. Neste momento, sou dos autores portugueses mais vendidos de sempre no Brasil, dos mais reconhecidos.
Recebo convites para lá ir todos os meses, quase todas as semanas, durante um tempo. Eu fico extremamente grato, mais uma vez, pela generosidade daquele público que acreditou em mim, no que eu estava a dizer, e por isso é que se comoveu. A partir dali criou-se um autêntico fenómeno, uma coisa que não pode ser preparada, não pode ser estudada, não pode ser antecipada. É algo espontâneo, que não tem muita explicação. Foi incrível...

Aquele texto era tão simplesmente a vida de Valter Hugo Mãe...

Era uma memória minha… Já tive muitas experiências, aqui em Portugal, de ler textos ou de ter participações e as pessoas comoverem-se. Aquela não foi a primeira vez que o público chorou com um texto meu, e sobretudo não foi a primeira vez que eu me emocionei numa sessão pública. Aqui, já me tinha emocionado de norte a sul, inclusive, já tinha tido efeitos incríveis nas Correntes d’Escritas. Quando saiu «a máquina de fazer espanhóis», em 2010, foi o livro mais vendido de sempre das Correntes, e isso terá sido efeito da minha participação,  porque, basicamente, a plateia levantou-se e foi em peso comprar o livro. E é incrível pensar que o livro vendeu muito mais do que os livros que ganharam o próprio prémio das Correntes e do que os autores consagrados, que nós todos adoramos e que vamos ver para pedir autógrafos. Por isso, quando me falam do Brasil, eu gosto dessa ressalva: não é que o público português não me tenha recebido bem, que também não tenha tido essa generosidade comigo – teve sim.
O que aconteceu no Brasil foi essa coisa espantosa de criar uma ponte com um país que é tão irmão e ao mesmo tempo tão inacessível. Esta coisa de os autores brasileiros virem para Portugal ou dos autores portugueses irem para o Brasil parece muito difícil de fazer. E há autores consagrados que passam a vida inteira sem conseguir criar um efeito lado a lado. Eu sempre disse que o meu sentimento é de profunda gratidão.
Voltei agora lá, passado um ano, porque quis dar um tempo para o público ler os livros e criar uma imagem sobre aquilo que eu escrevo, e não sobre aquilo que eu sou. E receberam-me de uma forma incrível, com um carinho enorme. «O filho de mil homens», que saiu lá agora, entrou nos tops de ficção de todas as cadeias, e é incrível ter essa popularidade num país continental como é o Brasil.

A música é outra das suas paixões. Tem uma banda (Governo), é o letrista e canta.

Sim. Eu escrevo as letras e canto. E detesto. Devo dizer que quando escrevo para alguém sinto-me melhor. Quando ouço alguém cantar letras que eu escrevi, acho-as sempre melhores; quando canto as minhas próprias coisas, sinto-me pouco à vontade. E duvido sempre das letras, acho que podiam ser melhores. Tenho a ideia fixa de pedir a escritores amigos para escreverem as letras para eu cantar. Fazer o contrário.
E assim defendo-me.

Porquê Governo?

Porque precisamos de algum governo em que possamos confiar. Por isso arranjamos um que é, sobretudo, de gestão sentimental, um governo afetivo. É melhor do que o outro.

Que lugar ocupa a música na sua vida?

Central. Como ouvinte, claro. Inspira-me muito, a música, as letras. Há letristas fundamentais como Cartola, Chico Buarque, Caetano Veloso, João Peste, Adolfo Luxúria Canibal, José Mário Branco, o Zeca Afonso. Há gente que canta textos que marcam presença constante na minha vida.
A música tem esta coisa. Podemos ler um romance e fixar uma ou outra passagem, mas não passamos os dias a repetir essa passagem em voz alta. Na música, podemos passar o dia inteiro a cantar uma determinada passagem, a dizer a letra uma e outra vez – as canções podem transformar-se quase em mantras, e os seus textos, se forem poderosos, se forem brilhantes, podem iluminar os nossos dias, o nosso pensamento. Eu gostava de ter uma memória melhor, para poder decorar mais coisas, mas tenho letras e coisas da Billie Holiday, do Chet Baker, do Johnny Hartman ou da Nina Simone, que sei de cor e que vou dizendo. De algum modo, são coisas que fazem um retrato da minha personalidade.

Vamos falar do Valter Hugo… Lemos. Porquê Mãe?

Porque as mães são indivíduos capazes de um afeto mais incondicional e acho que a maternidade é a experiência mais absoluta da humanidade. Por isso acho que as mães são o ser humano escolhido; os pais, ou os homens, são a parte desfavorecida da humanidade, porque temos direito a uma experiência humana muito menos intensa, muito menos absoluta. A palavra Mãe no nome de um homem significa que um ser humano perfeito teria de ser completo ao ponto de englobar tudo, e isso é uma utopia. Mas a literatura, que é feita de ficção e é feita de permissividade, é um modo de eventualmente nos completarmos. O “Crisóstomo” fala muito da necessidade de completude e a literatura talvez exista para isso, para nós colocarmos textos, colocarmos o pensamento nas falhas que temos; no fundo, para colmatarmos as falhas com o exercício do pensamento.

Na sua vida há uma presença familiar feminina bastante marcada…

Sim. Para além da minha mãe, tenho duas irmãs mais velhas; mas também tenho um irmão, e havia o meu pai. Eu sou o mais novo, e então tinha sempre a minha mãe para me mimar, depois tinha a minha irmã mais velha para me mimar e depois tinha a outra irmã para me mimar. Por isso fui sempre um menino; até uma certa idade, mais do que um menino da mamã, era um bonequinho de brinquedo, que as minhas irmãs adoravam. Tinha três, quatro, cinco anos, e as minhas irmãs faziam de conta que era filho delas e davam-me colo, embalavam-me e brincavam comigo e com as outras meninas a fazer de conta que eram mamãs; faziam-me umas caminhas, eu tinha de me deitar e depois queriam sempre embalar-me para eu adormecer. E eu não queria dormir, queria brincar… Passei por essa fase, era assim um Nenuco, maiorzinho e verdadeiro.

Isso influenciou-o de alguma maneira?

Sim. A minha família é muito próxima, e acho que cresci muito atento às questões das minhas irmãs. Às do meu irmão também, obviamente, mas as minhas irmãs chegaram primeiro às grandes questões da vida: namorar, casar, ter filhos.
Por isso fui vendo, fui antecipando o mundo tal qual ele é e perdendo a ingenuidade infantil a partir dos exemplos das minhas irmãs. Isso tanto me fascinou, como me magoou. Por isso é que eu acho que fiquei um pouco feminista, defendo um pouco as causas das mulheres. Enfim, algumas merecem que eu seja feminista, outras não, mas tenho um pouco a tendência para achar que as mulheres ainda são vitimizadas, ainda não recebem o mesmo que os homens, embora já comecem a estudar mais do que os homens e, genericamente, já há mais mulheres inteligentes do que homens inteligentes. que é uma porcaria… [risos]

Nasceu em Angola. Há alguma influência africana no Valter Hugo Mãe?

Há uma, que tem que ver com a ausência de um lugar natal, digamos. O normal é as pessoas saberem que nasceram aqui ou ali, naquela casa, naquele hospital, naquela rua, e eu não sei isso, não tenho memória disso. Nasci numa cidade que não conheço, num hospital de que vi uma fotografia porque há tempos meteram uma fotografia na internet. Por isso, cresci um pouco com essa falta. É como se houvesse um tempo – os dois primeiros anos da minha vida – que está sob um apagamento, de que não tenho memória. E isso sempre me trouxe fantasias, porque as pessoas falam que em Angola, naquele tempo, era assim ou assado. Inclusive, no primeiro romance [«o nosso reino»], eu não digo que é Angola, mas falo de África, e há uma pessoa que fala de África e que cria mitos e que diz que as mães quando não têm dinheiro para sustentar os filhos plantam-nos no chão e eles crescem como se fossem árvores. Dizem coisas assim, absurdas. Acho que durante muito tempo fantasiava-se acerca do que era a vida das pessoas em Angola, do que é vida dos negros, por exemplo, e o preconceito e o boato criam as coisas mais estapafúrdias. Lembro-me de dizerem que as mulheres africanas não tinham a menstruação normal, que punham ovos. Enfim, disseram-me de tudo quando era miúdo, as coisas mais horríveis e mais fascinantes… E de repente torna-se incrível pensar como é que a imaginação e a estupidez podem gerar as histórias mais mirabolantes. África tem tido esse contributo na minha vida; acho que, sem querer, dotou-me de fantasia.

Veio muito cedo para Portugal. Não há portanto aquela saudade…

Pois, se tivesse estado mais tempo, provavelmente já haveria saudade. Assim, não posso dizer que tenha saudade. Claro que adorava lá ir, adorava conhecer, mas não é exatamente uma questão de saudade, porque não tenho na memória coisas concretas daquele lugar.

Para terminar, e como gosta de viajar: se fosse para uma ilha deserta, que livro levava na bagagem?

Talvez pusesse livros que ainda não li, porque não sou muito de reler. Levaria tudo o que não li do Dostoievski, aquilo que ainda não li do Afonso Cruz, as poucas coisas que não li da Clarice Lispector. Estou a dizer as coisas que quero ler neste próximo ano, coisas que eu acho que preciso de ler. Levava a poesia do Lêdo Ivo, levava a poesia completa do Al Berto, e a do Herberto. E acho que levava os dois únicos livros que não li do António Lobo Antunes, de 500 páginas – não tive ritmo cardíaco, mas acho que numa ilha deserta o coração ia abrandar de tal maneira que eu ia conseguir ter tempo mental para os ler.

Entrevista conduzida por Maria João Leite


  
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