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Quando escrevo poesia, escrevo com tudo aquilo que sou

“O Animal Eólico do Corpo”, o último livro de poesia de Nuno Higino, lançado em 2008, foi um dos escolhidos para inaugurar a coleção “Laberinto de Saudade” da Editorial Amargord (Madrid). Um reconhecimento que foi um “perfeito acaso”, conforme contou à PÁGINA o autor. O ideal seria viver da poesia, mas é difícil. “Somos um país que tem muitos poetas e poucos leitores de poesia”, lembrou. Nuno Higino nasceu em Sendim, Felgueiras, em 1960. Foi professor de Português e, durante anos, pároco em Marco de Canaveses. Entretanto, deixou a vida religiosa e hoje é professor de Filosofia na Universidade Fernando Pessoa. As suas experiências marcam o percurso do autor: “Quando escrevo poesia escrevo com tudo aquilo que sou”.

“O Animal Eólico do Corpo” foi publicado em Portugal em 2008 e entra agora no mercado espanhol. Foi uma surpresa?
Mais do que tudo foi um acaso. Um acaso ter-me cruzado com a Julia Dieguéz e de alguém lhe ter falado dos meus livros. Ofereci-lhe este livro em versão portuguesa e passado muito pouco tempo ela disse-me que tinha gostado muito e que queria mesmo traduzi-lo. E portanto, foi uma coisa tão simples como esta. Foi um acaso, um perfeito acaso.

É um reconhecimento do seu trabalho.
Eu não tenho grande trabalho nesta área. Este é o meu quarto livro de poesia e para uma pessoa da minha idade não posso ter trabalhado muito porque senão tinha muito mais produção. Eu não faço da poesia profissão, infelizmente. Infelizmente, porque isso era o que eu gostava de fazer, quer no aspeto profissional, quer no aspeto de entendimento da vida, da relação com a vida. Mas a vida é o que todos nós sabemos, com muitos obstáculos, com muitas crises sucessivas. E portanto é muito difícil.

É difícil viver da Cultura?
Pois. E a poesia é muito mais difícil que muitos outros aspetos da Cultura, que apesar de tudo ainda têm alguma ‘brechazinha’ para abrir no meio do muro. A poesia é mais difícil. Nós dizemos que somos um país de poetas, mas nós vemos as tiragens que há dos livros de poesia. Somos um país que tem muitos poetas e poucos leitores de poesia, ou nenhuns.

O que é que o público espanhol pode esperar deste livro?
Eu procuro que seja – não apenas neste livro, mas também nos outros – uma poesia da verdade, no sentido mais profundo da palavra; que revele, digamos assim, um acordo entre nós, entre as pessoas, com as outras pessoas, com a natureza. Sempre me preocupou muito a nossa relação com os outros e com a natureza. Sou da convivência, sou da ecologia, sou dos campos, das montanhas, do mar. E esta poesia fala um pouco dessa verdade que eu procuro, que eu não tenho mas que procuro, no meio disto tudo, desta bola suspensa aqui no meio do universo e da nossa passagem efémera por aqui. Enfim, procurar passar o tempo que aqui passamos, que é pouco, da maneira mais verdadeira possível e da maneira mais amigável possível uns com os outros e com tudo o que nos envolve.

Na sessão de apresentação do livro, Mário Cláudio referiu “a paisagem serena da ruralidade” presente neste livro.
A referência a essa ruralidade é óbvia, porque eu nasci na ruralidade, no meio dos campos, no meio dos animais… Agora, eu tive a sorte de ter uns pais que, sendo pobres, tiveram alguma visão e nos puseram a estudar a todos em tempos muito difíceis. E eu sempre interpretei isso como uma oportunidade que nos deram de levantar voo daquela miséria do mundo rural. Claro que nem sempre conseguimos levantar voo porque às vezes as asas pesam demasiado. Às vezes tenho essa sensação de que as asas que me dão a possibilidade de me elevar e de voar são demasiado pesadas e custa-me muito. Dificilmente sinto essa atração do voo, esse fascínio, essa vertigem do voo, porque realmente é difícil elevar-se, sobretudo nas condições atuais.

Há algum encontro com Deus?
Eu sou crente, sou cristão e portanto também andará por aí. Porque eu não posso suspender nada daquilo que sou para escrever poesia, quando escrevo poesia escrevo com tudo aquilo que sou.

Foi professor de Português, padre e atualmente leciona Filosofia. De que forma é que toda essa sua experiência contribui para o seu percurso como autor?
O meu percurso é esse e aquilo que escrevo é fruto desse percurso. Claro que as circunstâncias não mudam tudo mas mudam muita coisa. E as circunstâncias fizeram-me mudar algumas coisas. Este livro é, como todos os outros, fruto das suas circunstâncias. Penso que é o primeiro livro de poesia que escrevi depois de deixar de ser padre. Mas penso que não é muito diferente do anterior nos seus aspetos essenciais.

Tudo interfere no trabalho.
É aí que se vai buscar a poesia. Quer dizer, aquela imagem muito romântica de que o poeta se põe lá num sítio muito isolado à espera que venha a poesia, que venha a musa… Não. A poesia vem no contacto com as pessoas, naquelas coisas que nós fazemos todos os dias. Penso eu. Provavelmente poderá haver outras pessoas que pensam de outra forma.

Tem alguns livros publicados, quatro deles de poesia. Mas tem outro tipo de trabalhos. Como é que pode descrever o seu percurso?
Aquilo que mais gosto de escrever é para crianças. E o percurso foi exatamente ao contrário: comecei por escrever poesia. Desde muito novo que escrevo poesia. Escrever para crianças foi uma circunstância. Já era padre, era necessário fazer umas coisas para o Natal, e então alguém lembrou-se de que eu podia escrever uma história. E eu escrevi. Foi a minha primeira história. A partir daí escrevi sempre e hoje é aquilo que me dá mais prazer fazer. Gosto muito de escrever sobretudo poesia para crianças. Acho que dentro das coisas que escrevi para crianças, entre a prosa e a poesia, acho que a poesia é o melhor. Mas também não me compete a mim avaliar. De qualquer forma, isso é que me dá verdadeiro prazer.

Quando escreve para crianças, que tipo de mensagem pretende passar?
Exatamente os mesmos da poesia: cultivar os valores da amizade, da boa convivência, da tolerância. Enfim, essas coisas todas que penso que transparecem quer na poesia quer nos livros infantis, embora provavelmente pela sua própria natureza nos livros infantis de uma forma mais imediata.

Que projetos tem para o futuro?
Continuar a escrever. Até que a voz me doa (risos). Tenho um livro de poesia para publicar ainda este ano, que se chama “Os Rios Sedentos”. Julgo ainda poder publicar até ao fim do ano, se tiver dinheiro para isso, porque agora para publicar temos de pagar, porque as editoras não se arriscam a publicar poesia. Para as crianças, vou escrevendo. Estão sempre a aparecer…

Maria João Leite (entrevista)
Henrique Borges (fotografias)


  
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